sexta-feira, setembro 25, 2020
[Falecimento]
Hace unos días murió, tan calladamente como había vivido, el cineasta portugués António Reis, autor - con Margarida Cordeiro, su mujer - de tres películas, entre las que se cuentan al menos dos de las mejores rodadas en Portugal, y una de las más apasionantes rodadas en cualquier lugar del mundo durante los años 80 "Ana" (1982).
Lamentablemente, y como es costumbre, por mucho que algunos se esfuercen para poner remedio a tan absurda ignorancia, casi nadie sabrá en nuestro país quién era António Reis y ni podrá imaginar por qué la noticia de su inesperada y permatura muerte, aún sin conocerle personalmente, me resultó especialmente deprimente. Esa persistente falta de interés por nuestros vecinos - que los portugueses, en medida algo menor, con menos arrogancia, nos pagan en la misma moneda - explica que António Reis no sea una figura conocida y respetada más que por un puñado de cinéfilos, sin duda los contados pero fieles espectadores que se han molestado en ir descubriendo, en varios festivales - como el de Valladolid, donde se premió "Ana", sin que eso animase a ningún distribuidor a estrenarla en España - y, sobre todo, asiduamente, una vez y otra, en la Filmoteca Española: primero "Tras-de-Montes" (1976), tras seis años de espera "Ana", y siete después "Rosa de Areia" (1989). Pese a trabajar en pareja, como Jean-Marie Straub y Danièle Huillet, António Reis y Margarida Cordeiro eran casi tan premiosos como Víctor Erice, con quien tenían algunos otros puntos de contacto, un no sé qué "nórdico" y misterioso, quizá "dreyeriano.
Hay que reconocer que sus películas eran una extraña combinación de primitivismo y modernidad, de elaborada estilización y de documentalismo "en bruto", de tosquedad y elegancia, de laconismo y poesía, como si se dejasen llevar por un instinto reflexivo y meditabundo, pero considerasen más interesante lo real, o lo que del entorno físico y los rostros revelaba la cámara, que el cine en sí mismo, que la idea de narrar, que las historias que, de hecho, contaban con imágenes extraídas, en una labor que tenía algo de minería y no poco de escultura, de la realidad... una realidad recóndita, remota, encerrada en sí misma, la de su región, una de las más deprimidas y atrasadas de Portugal. Eran obras singularmente sobrias y discretas, susurradas, confidenciales, sin pretensiones artísticas, a lo sumo artesanales, pero de una singular e insólita belleza, con un tono, un sonido, una "voz" y un ritmo que las hacía no sólo instantáneamente identificables, sino entrañables y depuradoras y tonificantes para el que se siente periódicamente hastiado del cúmulo de rutinarias convenciones y efectistas bajezas, de la uniformización rampante y ramplona del grueso del cine actual.
Para António Reis, hacer cine no era una actividad lucrativa, ni comercial, ni una operación de prestigio, sino un ejercicio casi manual de la libertad: mirar a su alrededor y registar lo que se ve, para poder transmitirlo, y no vendiéndoselo a un público anónimo y aborregado, sino poniéndolo a disposición del que sienta interés. Esa visión ha acabado, tras sólo tres entregas.
Miguel Marias
Jornal Diario 16, pág. 27, Cultura/Espectaculos, Miércoles, 25 de Setembro de 1991.
AGRADECIMENTO: Ao Professor José Alves Pereira por nos ter enviado este artigo do jornal "Diario 16". Muito obrigado!
quarta-feira, junho 03, 2020
233. Lições António Reis
DESCASCO AS IMAGENS E ENTREGO-AS NA BOCA
Lições António Reis
por
José Bogalheiro | Maria Filomena Molder | Nuno Júdice | Manuel Guerra | Fátima Ribeiro | Maria Patrão.
Editora Documenta, Maio de 2020
António Reis foi professor na «Escola de Cinema» entre 1977 e 1991, magistério que exerceu com dedicação total, ao seu modo e marcante de diversas formas para os seus alunos que "recolheram as aulas na sua própria vida". Em Outubro de 2018, o Departamento de Cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema organizou a homenagem «Lições António Reis».
A homenagem e agora a edição em livro dos textos apresentados têm como intenção privilegiar a singularidade desse magistério, "não tanto numa perspectiva de evocação memorialista, mas antes indagando hoje que aspectos, tópicos, dimensões ‘daquilo que António Reis nos legou’ poderão ser propostos à atenção da actual geração de alunos do Departamento de Cinema".
Página da editora dedicada à obra:
"Descasco as imagens e entrego-as na boca. Lições António Reis"
José Bogalheiro | Maria Filomena Molder | Nuno Júdice | Manuel Guerra | Fátima Ribeiro | Maria Patrão.
Editora Documenta, Maio de 2020
António Reis foi professor na «Escola de Cinema» entre 1977 e 1991, magistério que exerceu com dedicação total, ao seu modo e marcante de diversas formas para os seus alunos que "recolheram as aulas na sua própria vida". Em Outubro de 2018, o Departamento de Cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema organizou a homenagem «Lições António Reis».
A homenagem e agora a edição em livro dos textos apresentados têm como intenção privilegiar a singularidade desse magistério, "não tanto numa perspectiva de evocação memorialista, mas antes indagando hoje que aspectos, tópicos, dimensões ‘daquilo que António Reis nos legou’ poderão ser propostos à atenção da actual geração de alunos do Departamento de Cinema".
Página da editora dedicada à obra:
"Descasco as imagens e entrego-as na boca. Lições António Reis"
segunda-feira, junho 01, 2020
232. "Poemas Quotidianos" - no "Jornal i"
[Poesia]
António Reis. "Eu não voo, ando: quero que me oiçam"
Meio século depois, a Tinta-da-China recupera uma das obras de culto da poesia contemporânea portuguesa. “Poemas Quotidianos”, do poeta e cineasta António Reis, faz regressar ao nosso convívio uma voz que precisou de apenas cem breves poemas para falar a essa altura em que todos podem ouvi-la claramente, mas que se fixa em nós como um segredo.
Ultimamente, a cópia que mais circulava dos “Poemas Quotidianos” e nos chegou às mãos, resultou de uma digitalização do exemplar dedicado por António Reis a Miguel Torga, o “Mestre - com quem precisaria de conversar numa longa vida”. É da edição de 1967, publicada naquela que era, à época, a mais prestigiada colecção de poesia - “Colecção Poetas de Hoje”, da Portugália Editora. Coube agora à Tinta-da-China, na colecção coordenada por Pedro Mexia, a tão aguardada reedição meio século depois, e mais de um quarto de século volvido sobre a morte do autor. Reis não chegou a viver uma longa vida, morrendo pouco depois de completar os 66 anos, mas a exemplaridade da sua breve obra, seja enquanto poeta, seja posteriormente no cinema, não tem deixado a sua “figura luminosa” apagar-se na noite que tão cedo se faz para quase todos os que apresentam ao carimbo final um passaporte português.
Ninguém contava com a morte dele, não houve notícia senão no dia seguinte, e muito breve, num só jornal. Muito poucas pessoas estavam assim junto a ele, no funeral. O crítico de cinema, admirador confesso e amigo, João Mário Grilo faria um desabafo a propósito desse dia perto do fim do verão de 1991: “Chocou-me ver como é que se morre tão sozinho. Foi a enterrar com os amigos, o que também é bonito, mas não sei... O Reis merecia mais, foi alguém de quem todos nós fomos testemunhas. Acho que o país lhe deve muito mais do que ontem lhe pagou. O mundo da cultura esteve um bocadinho ausente e não senti a presença dos órgãos de representação pública”.
Depois vieram as reações com o atraso próprio do desastre na intimidade de cada um, veio a consciência daquela perda, e logo ganharam mais razão àqueles tão simples e ecoantes versos de Reis: “Verás amor/ verás que/ o coração/ não morre/ que tanta comoção/ atrás dele/ corre”. Uma das mais tocantes despedidas chegou no sétimo dia da sua morte, escrita por Eugénio de Andrade, que trocava de rosa para deixar a Reis esta homenagem: (“Morte Quotidiana”) Recorto a tua morte no jornal;/ meto-a num livro teu/ já antigo; a desmesura do olhar/ junta-se agora ao silêncio/ para a derradeira memória/ de ti: poesia eriçada,/ irmã dos cardos, rasteira.”
Noutro poema, o mais breve de entre a justa centena desta reunião que agora nos é devolvida, o poeta assumia esse seu passo tão detido, ao rés dos dias, entre as coisas que, de serem propriamente nomeadas, respeitando o espaço de cada, tão rapidamente nos colocam perante um lugar e uma experiência. Dizia ele: “Eu não voo/ ando// quero que me oiçam.” E Jorge Listopad repetiu-lhe os primeiros dois versos, antes de despedir-se: “Adeus, anjo pedestre, anjo autodidacta.”
A edição que a Tinta-da-China agora nos traz, no que toca aos poemas de António Reis, nada adianta à edição da Portugália, presumindo-se assim que nada mais se encontrou no espólio do autor, nada senão os poemas escritos ao longo de uma década (1952-1962), no Porto. Havia a esperança de que uns poucos mais pudessem juntar-se-lhes, porque é sobretudo “quando o silêncio tem pó/ e é perfeito” que o anseio de outra palavra se torna mais forte.
De resto, no depoimento de Paulo Rocha vindo a lume no “Jornal de Letras”, o cineasta lembrava-se de ter pedido ajuda a Reis quando traduziu do japonês uma série de 50 haiku - publicados na Moraes em 1970 -, e de como essa colaboração reanimou o impulso para que retomasse os versos. “Pedi-lhe ajuda para ‘limpar’ o texto. Não sei escrever em português, caio sempre em literatices falsas. Foi um trabalho de meses, as melhores aulas que tive na minha vida. O António sentia o peso de cada palavra, de cada sílaba, fugia aos efeitos. Por influência dos haiku o António recomeçou a escrever poesia, lembro-me de ele me recitar um quase haiku belíssimo, uma cena de matança. Era sobre a neve a cair no prato, onde coalhava o sangue do porco. Onde estará este poema? Havia outro, misterioso, dedicado a um olmo. Perdido também? Começou a estudar chinês, apaixonou-se pelo Tufu, de quem eu lhe emprestei uma edição bilingue, comentada. Acabou por pôr o nome de Tufu a um grande mocho que vivia lá por casa em liberdade. O poeta chinês deve ter ficado encantado, lá no assento etéreo.”
Assinalam-se 90 anos desde o nascimento do poeta e cineasta no final do próximo mês, e é significativo como, para lá da sempre confitada imagem que se retira das notas biográficas, é pelos testemunhos dos amigos, nas evidências do companheirismo, as situações e episódios que se incrustaram na memória dos que com ele conviveram, que ainda hoje a figura de António Reis impõe a sua presença e também fascínio.
Para estancar a ausência, deve destacar-se o aparecimento há uns anos de um simples blogue (http://antonioreis.blogspot.pt), que mantém até hoje o maior dos despojamentos, e onde se reuniu um precioso arquivo, que inclui uma série de artigos e reportagens, entrevistas, críticas, depoimentos ou ensaios que, ao longo dos anos, foram dedicados a Reis e à sua obra. Com alguns dos seus poemas pelo meio e a chamada de atenção para as bóias atiradas para o meio deste naufrágio, a generosidade deste trabalho de António Nunes da Costa Neves foi o maior contributo para suprir a grave falha de memória que atirou Reis para a galeria dos nossos marginais que, afinal, até fizeram tudo para ser ouvidos.
O site foi servindo de rastilho para aqueles que chegaram tardiamente à obra e acolhido com alegria pelos admiradores a quem foi dada uma oportunidade de o recordar. Foi ali que pudemos descobrir o arrebatador depoimento de Manuel António Pina (MAP), publicado depois da morte de Reis nas páginas de uma dessas revistas que hoje não há, perdendo a realidade expressão, sobretudo no que nos é mais local, “consequência do lugar” e da parte do mundo que nos toca e afecta, perdendo a sua própria sensação, por já não poder enfrentar o seu reflexo nem ouvir ecos seus... A revista chamava-se “A Grande Ilusão”, dedicado ao cinema, à arte, dirigida por Regina Guimarães, publicada no Porto pelas Edições Afrontamento. MAP fala dos anos em que ele e outros tiveram em António Reis um poeta mais velho, coisa hoje tão rara, pois se ainda os há, ou estão retirados, ermitados, virados para si mesmos e a pentear os últimos cabelinhos das suas obras, ou então lixados com tudo isto, destratados, marginalizados para que uns medíocres encham alguma divisão lá na casa de prémios e troféus de caça.
“Andávamos com os ‘Poemas Quotidianos’ no bolso e partilhávamo-los avaramente, nos cafés e nas longas noites solitárias da adolescência, como um fogo comum, um sinal que nos identificava uns aos outros como membros da mesma tribo errante; éramos todos jovens, ou julgávamos que éramos, e acreditávamos, naqueles tempos controversos, que nos havia sido dado o dom de, pela poesia, compreender e mudar o mundo e a vida. António Reis não o sabia, mas todas as palavras que então possuíamos eram as suas”, lembra MAP. E fica aqui só o incentivo, uma vez que o relato é todo ele uma delícia e os contornos que dele despertam são tão vivos que a evocação se torna contagiante.
Isto passou-se anos antes de Reis deixar o Porto pela capital, para dedicar-se profissionalmente ao cinema, acabando a dar aulas na Escola de Cinema do Conservatório Nacional. Foi ali que teve Joaquim Sapinho como aluno no final dos anos 80, e é seu o posfácio da nova edição dos “Poemas Quotidianos”, e é nele que nos conta o momento de terrível consternação em que Reis se deu conta de que não voltariam a deixá-lo filmar.
Abrindo com um prefácio de Fernando J. B. Martinho, que faz um excelente trabalho no sentido de contextualizar o momento em que surgem os dois livros de António Reis - “Poemas Quotidianos”, em 1957, e “Novos Poemas Quotidianos”, em 1960, ambos “editados sob a égide de Notícias do Bloqueio, uma publicação do que habitualmente se considera uma segunda fase do neo-realismo” -, o depoimento de Sapinho com que o volume encerra dá-nos mais algumas peças, num intrigante puzzle em que se descortinam as dificuldades que impediram António Reis e a mulher, Margarida Cordeiro - com quem co-realizou as longas-metragens “Trás-os-Montes” (1976), “Ana” (1982) e “Rosa de Areia” (1989) - dessem seguimento a uma tão singular aventura no panorama do cinema português. Tida como “um exemplo contra a ditadura do cinema comercial”, António Cabrita citava José Bogalheiro, chefe de produção e também ele professor da Escola de Cinema, que notava como “[o] silêncio dos meios de comunicação sobre a morte do Reis é um sintoma das novas maiorias. Mesmo em termos de vazio que ele deixa na Escola é um lugar impreenchível. O Reis era um representante de um cinema minoritário e tinha uma poética que entre os alunos provocava adesões”.
Depois de ter-se estreado enquanto assistente de realização de Manoel de Oliveira (“Acto da Primavera”, 1962), e ter escrito diálogos para Paulo Rocha (“Mudar de Vida”, 1966) foi com a curta-metragem “Jaime” (1974) que Reis abriu uma brecha e tornou de imediato o ambiente mais respirável, retratando o caso de um pintor, dado como doente mental, mas que se revelava, afinal, um génio pela forma como, liberto dos habituais constrangimentos da lógica, se punha a recriar pictoricamente o universo”. João César Monteiro viria a elegê-lo como “um dos mais belos filmes da história do cinema”.
Nascido em Valadares, uma pequena aldeia nos arredores de Vila Nova de Gaia, António Reis tinha a infância e adolescência metidas com a gente que perde a identidade para as exigências do quotidiano. Nunca pôde ou quis assumir a distância que lhe permitisse ter o “povo” como uma abstracção ao serviço de elegâncias retóricas, de provas de sensibilidade social no concurso dos modelos artísticos que mandavam aproveitar este ou aquele vento. Era ainda operário fabril quando os primeiros poemas lhe surgiram, e Paulo Rocha lembra como carregava os estigmas das existências à beira de não terem nada de seu, nada senão as horas dos dias indiferentes, exauridas. “Humilde, humilhado, secreto, vegetava nos escritórios da Vista Alegre, em Gaia. Odiava a arrogância de um patrão marialva e acompanhava de perto o fluir da vida comum. À primeira vista parecia um operário. Morava num apartamento em Gaia com vista para o rio. As paredes estavam cobertas com bonecos de pano de todas as cores, feitos pelos loucos de um asilo. Os bonecos eram monstros de várias cabeças e muitas pernas, e anunciavam já os desenhos de Jaime. Naquelas janelas que davam para o nevoeiro do rio havia uma energia irracional, um sopro vital à beira do abismo.”
Só um poeta que atravessou a banalidade, não se recusou à sua vertigem e até horror, só um poeta que perdoou a vida e se reconciliou com ela, aprendeu a comover-se com as minudências, alguém que descobriu que o segredo passa por precisar de muito pouco para sentir a diferença... “Um espaço interior/ criei/ nestes poemas// onde estalam os móveis/ e os sentidos// onde as ideias/ a meia-luz/ respiram// e a vida/ as imagens/ não se reflectem/ só/ nos vidros”. Ou, então, este outro exemplo, com mais multidão dentro: “Hei-de entrar nas casas/ também/ como o luar// A ver as faltas de roupa interior/ e de cama// os rostos preocupados/ com os avisos da luz e da água// com a máquina de petróleo apagada/ jornais nas paredes/ e um pássaro na varanda/ a cantar/ ao lado de uma flor”.
Tão difícil uma ou duas palavras por verso ocuparem a vista inteira, e a memória afectiva, os lugares onde estivemos, e esses outros que, de tão comuns, nos esmagam. Em tudo o que Reis escreve há o sabor de últimos poemas, poemas desgraçados de amor e o resto.
Tinha havido já outros livros antes de “Poemas Quotidianos”, mas a diferença destes, a sua radical clareza, o prodígio da sua concisão, levou a que o poeta apagasse da sua bibliografia tudo o que estava para trás. Depois de 1962, o silêncio das décadas seguintes viria sublinhar o rigor daqueles versos. A edição que hoje nos devolve os cem poemas da tão redonda conta de Reis deixa pelo caminho um dos mais impressionantes e vigorosos ensaios que se escreveram sobre um poeta português. O volume da Portugália era antecedido pelo longo estudo de Eduardo Prado Coelho, que, de tão exaltante, talvez incorra no perigo de exigir demais dos leitores que se preparam para entrar num convívio com um poeta cujas subtilezas só com os anos, a vida, as visitas feitas de tempos a tempos poderão explicar como esta simplicidade se desdobra, como este era um poeta que tinha falado cada coisa depois de rodeá-la muitas horas calado.
“Em António Reis, toda a poesia emerge do silêncio - processo difícil, lento, convulsivo. Porque se trata dum silêncio tenebroso, feito de cegueira e rouquidão, feito de dias alucinadamente repetidos, feito de esgares apenas - esse silêncio de pedra que é o quotidiano de muitos”, referia Prado Coelho, acrescentando: “E cumpre-nos apontar a coragem de António Reis. Porque há coragem em suportar e assumir a ambiguidade da poesia quando tudo a torna impossível: poesia é sempre sinal de que há algo de supérfluo (e por isso é natural, é já natural uma palavra desviada da sua utilidade imediata) e sinal de que algo nos falta (e por isso não nos basta, ainda nos não basta a palavra essencial, reduzida ao seu valor prático). Ora a poesia a que estamos acostumados, reconhecendo embora a existência desta tensão inevitável, acaba sempre por escolher o pólo do supérfluo (mesmo que seja para declarar o seu remorso): é poesia feita de palavras escolhidas entre palavras, é poesia da fala humana e criadora.”
Diogo Vaz Pinto
Jornal i, págs. 34-36, de 12 de Julho de 2017.
quinta-feira, maio 21, 2020
231. "Poemas Quotidianos" - no "Observador"
[Poesia]
António Reis, um poeta maior há 50 anos esquecido
A última vez que se publicaram os Poemas Quotidianos de António Reis foi em 1967, há 50 anos. A Tinta da China acaba de resgatá-los do esquecimento e faz um dos grandes acontecimentos literários do ano.
O rosto não é familiar. Podia ser um camponês de Trás-os-Montes ou do Alentejo, podia ser um asilado há décadas, podia ser um funcionário anónimo de uma fábrica qualquer. Era certamente um homem. E isso era tudo o que ele queria que soubéssemos: que ele não era um pássaro, uma ideia, um conceito, era um homem cuja dignidade passava por ter o direito ao nome e à palavra. O rosto não é familiar. A poesia que já tão poucos lembram é talvez a que mais afinidades tem com a de William Carlos Williams que, por estes dias, é evocado no filme Paterson de Jim Jarmusch: o quotidiano sem ornamentos postiços mas como uma interrogação ética, o verso curto, as imagens enganadoramente simples como indícios do sagrado, que nos impelem para o enigma que cada objeto, cada gesto, cada corpo carrega. Poemas Quotidianos de António Reis não é apenas o grande acontecimento poético-literário do ano é também (para quem o quiser ouvir) uma cratera que se abre e expõe, sem cerimónia, a fraqueza e a gratuitidade da poesia que por estes dias se escreve e se publica sem cessar.
António Reis, mais conhecido como cineasta, autor com Margarida Cordeiro de filmes fundamentais do novo cinema português como Jaime (1973), Trás-os-Montes, Ana ou Rosa de Areia, chegou a ser, nos anos 70 e 80, o nosso realizador com mais protagonismo internacional a par com Manoel de Oliveira. Os poemas com palavras escreveu-os até final dos anos 50 e deixou-os em dois livros: Poemas Quotidianos (1957) e Novos Poemas Quotidianos (1960). Depois, passou a escrever com imagens, uma poesia de igual ou maior fulgor mas com a mesma estranheza, o mesmo peso, a mesma lentidão, a mesma decomposição da luz e dos tempos, sobretudo, a mesma urgência em se bater pelo direito do homem, de todos os homens a existirem com esperança e dignidade.
Morreu há 16 anos. Os seus poemas não eram reeditados há 50 anos (a última edição aconteceu em 1967 na coleção Poetas de Hoje da editora Portugalia) e os seus filmes há muito que não saem dos arquivos da Cinemateca. Poemas Quotidianos, acabado de publicar na coleção de poesia da Tinta da China, faz-nos ouvir de novo a voz de António Reis a exigir: “quero que me oiçam”. E ouvi-lo, lê-lo é a melhor coisa que aconteceu em muito tempo na Poesia Portuguesa.
Há, em torno dele, muitos mistérios, muita gente que não quer falar, desde a filha Ana Reis, a colaboradores. Há a presença silenciosa e espectral da inacessível Margarida Cordeiro sua segunda mulher e co-autora dos seus filmes, que há quase duas décadas se isolou numa aldeia de Trás-os -Montes. Na sua vida, no seu cinema, como na sua poesia tudo é enganadoramente simples e tudo está sempre na iminência de escapar ao que julgávamos saber.
"Sobretudo poeta.
Como esse pequeno homem de boné, imagem de um operário anónimo na rua da cidade que não era sua, na mão o saco das compras com os mantimentos apenas necessários, a cara chupada, mas os olhos, olhos brilhantes alimentados de todas as meteorologias, pois, como esse ‘fora de jogo’, levantava o mundo para ser visto, para nosso conhecimento.” [Jorge Listopad, 1991]
Um poeta vertical
Naqueles anos de ditadura e neo-realismo o jovem António Reis, de origens humildes, nascido em Valadares (Vila Nova de Gaia), que andou no mar com os vareiros da Afurada, que trabalhou nos escritórios da Vista Alegre, que surgiu como poeta na revista de poesia Notícias do Bloqueio (1957 e 1961) tinha poucas semelhanças com a poesia combativa e ideologicamente marcada da segunda geração de poetas neo-realistas dos anos 50. Está lá um olhar crítico sobro o mundo, sobre a ditadura, sobre a miséria mas de forma muito mais subtil e muito mais complexa. O “povo” representado por Reis não é coletivo. É individual, interior, ambíguo, obscuro. Os ângulos da sua visão poética são excêntricos, como mais tarde foram os planos no cinema que criou. Por isso, aquilo que nele se chama “Real” é, por natureza, incompreensível na sua totalidade e, certamente, nunca redutível às formas estéticas que as ideologias políticas do tempo impunham. A crueldade do mundo mostra-se não apenas nos gestos de um dia-a-dia de miséria e vergonha, mas também na crueldade de tudo o que escapa aos nossos olhos, à nossa sabedoria. Reis trabalhava com imagens e tempos heterogéneos, com reminiscências e memórias, impressões fugidias que não podiam, nem poder, servir como mero cabide para os fantasmas de uma época.
"Andávamos com os “Poemas quotidianos” no bolso, partilhávamo-los avaramente, nos cafés e nas longas noites solitárias da adolescência, como um fogo comum, um sinal que nos identificava uns aos outros como membros da mesma tribo errante; éramos todos jovens, ou julgávamos que éramos, e acreditávamos, naqueles tempos controversos, que nos havia sido dado o dom de, pela poesia, compreender e mudar o mundo e a vida. António Reis não o sabia, mas todas as palavras que então possuíamos eram as suas". [Manuel António Pina sobre António Reis, Maio de 1992]
Os homens da poesia de António Reis não são ignaros da sua condição, não precisam de um bardo que, de cima, lhes revele a verdade sobre a sua vida. Pelo contrario, como o próprio poeta, eles são donos de uma sabedoria sedimentada de muitas experiências de angústia, melancolia, alegrias breves, de segredos. São portadores de uma sabedoria milenar que lhes agudiza a consciência do presente e do futuro, logo do sofrimento. Como escreve o filósofo Giorgio Colli, sobre as origens da sabedoria: o conhecimento é sempre, antes de tudo, o conhecimento da dor. Essa é a grande vingança dos Deuses, aquele que vê, aquele que sabe, é aquele que mais sofre.
António Reis escolhe falar através do quotidiano, não porque este transporte uma maior verdade, mas porque esse quotidiano é apenas aparência, ilusão, em última instância é o caminho para o mundo que se esconde, não menos cruel, não menos desumano, mas onde brilha qualquer coisa de sagrado. Não há nesta poesia beatitude, purificação, não há utopias, nem luta de classes. A única redenção possível é ganhar o direito a ter um nome, logo uma dignidade. Neste sentido, esta lírica não pode estar mais longe daquilo que hoje escrevem os chamados “poetas do quotidiano”, do alto das suas vidas confortáveis e das suas muitas certezas mas de onde não brota qualquer empatia com as vidas comuns, anónimas mas apenas a sua objetificação como material de construção de imagens poéticas movidas a intensidades postiças.
Não nos deixemos pois cair na armadilha simplificadora da palavra “quotidiano”. A poesia de Reis é tudo menos simples e uma leitura superficial pode prestar-se a muitos enganos. Na verdade, toda a obra deste autor, seja a poesia, seja o cinema, é profundamente enigmática. Cada verso abre para múltiplas significações, cada gesto banal descrito é apenas o início de um espanto que nos vai conduzir a terríveis indagações, a imagens prenhes de novas imagens, que tão depressa se abrem ante os nossos olhos como se subtraem deixando-nos apenas a certeza de que é preciso ficar muito tempo naquele labirinto para aceder aos pequenos milagres que nele se escondem. Cada poema é um fragmento cuja força íntima nos deixa obrigatoriamente despidos de referencialidades fáceis.
"Mudamos esta noite
E como tu
eu penso no fogão a lenha
e nos colchões
onde levar as plantas
e como disfarçar os móveis velhos
Mudamos esta noite
e não sabíamos que os mortos ainda aqui viviam
e que os filhos dormem sempre
nos quartos onde nascem
Vai descendo tu
Eu só quero ouvir os meus passos
nas salas vazias.”
Animais como retratos de príncipes
Provavelmente a melhor forma de compreender como a poesia de António Reis extravasa esta dimensão “quotidiana” é vendo o seu cinema. Também aí a sua obra se constrói como algo absolutamente ímpar no cinema Português. Tal como a sua poesia estava nas margens do Neorealismo, a sua cinematografia tem o mesmo projeto ético de devolver a dignidade ao homem. Jaime (1974) o seu primeiro filme, (depois de ter colaborado com Manoel de Oliveira em Auto da Primavera (1962) e com Paulo Rocha em Mudar de Vida, 1966) representa a mesma luta pela dignificação do homem nas suas circunstâncias mais extremas sem deixar de ser uma crítica velada à ditadura a vida desse homem, Jaime Fernandes, encarcerado no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda durante mais de três décadas, onde começa a desenhar criando uma obra plástica singular de criaturas entre o animal e o humano, atravessadas por ecos de um tempo imemorial e gritos dos seu terrível presente. Não muito diferente da poesia, onde Reis também trabalhou sempre mais dentro das imagens que dentro das palavras, para estilhaçar o tempo cronológico e com isso falar de experiências que simultaneamente nos precedem, nos afetam e permanecem muito além da nossa passagem pelo mundo. As imagens são a memória, a duração, os homens e as suas circunstâncias individuais são efémeros, frágeis.
A média-metragem Jaime conta-nos a história deste doente esquizofrénico através dos desenhos e cartas que ele deixou, mas também através das paredes circulares do hospício, evocando a teoria da vigilância panóptica desenvolvida por Michel Foucault. Estamos submetidos a uma vigilância total que acaba por ser internalizada pelos indivíduos que passam a ser os primeiros vigilantes de si mesmos e dos seus pares. Eis como opera um estado vigilante, seja em ditadura seja em democracia: criando fronteiras entre a loucura e normalidade, definindo o que fica na sombra e o que deve ser visto. Afinal também António Reis acabou por ser ele próprio, como poeta e como cineasta colocado num “ângulo morto” do meio literário e cultural português.
Jaime, proibido pela censura, acabou por se estrear pouco dias depois da Revolução, em conjunto com o Couraçado de Potemkin de Sergei Eisenstein, fez uma fulgurante carreira internacional, arrebatou vários prémios mas era ainda e sempre António Reis a devolver ao homem a sua memória, o seu mistério, a impor o seu olhar absolutamente indiferente às modas e aos códigos vigentes. O filme, com música de Louis Armstrong, Stockhausen, Teleman, cria uma harmonia que esconde para melhor dar a ver o terrível drama da vida deste homem sem nunca cair na romantização da loucura, uma imagem obscenamente gasta por artistas sem talento. Sobre ele declarou João César Monteiro: “Um dos mais belos filmes da história do cinema, uma etapa decisiva na história do cinema moderno”.
"A Margarida Cordeiro descobriu no hospital os desenhos do Jaime, e o António explicou aos sócios o que queria fazer, com aquele calor humano que só ele tinha. As pessoas ficaram apaixonadas pelo projeto, e como eu era presidente do centro aproveitei para pedinchar a ajuda de todos. Uns deram restos de película, o Acácio trouxe a equipa de imagem e o material, o filme foi nascendo numa atmosfera extraordinária de camaradagem. O resultado causou uma emoção considerável, e o António ganhou com ele na Alemanha o primeiro dos três grandes prémios internacionais que os seus filmes viriam a obter.” [ Paulo Rocha, cineasta, 1991]
É certo que António Reis tinha um feitio difícil, uma provocativa indiferença por tudo o que o rodeava e isso não lhe granjeou facilidades no mundo do cinema, onde o dinheiro é curto e os subsídios escassos. “Vivia no interior dos seus filmes e dos seus poemas, numa espécie de autismo obstinado”, escreveu Eduardo Prado Coelho, que foi desde o início um entusiasta da poesia de Reis, num incomum consenso com João Gaspar Simões, detentor do lugar de principal crítico literário do sistema, lugar que, de resto, Prado Coelho viria mais tarde a assumir ele próprio.
Outro dos combates de António Reis foi pelo direito de Margarida Cordeiro, co-realizadora dos seus filmes, a ter o seu nome associado às obras. Durante anos a imprensa falava dos filmes como se fossem feitos apenas por António Reis e omitia o nome de Margarida o que o deixava furioso e o levou a apresentar queixas contra os jornais em várias instâncias. Como podemos ver agora que a sua obra poética voltou a ver a luz do dia, o ato de nomear e a importância do nome como afirmação de uma individualidade e de uma dignidade são algo que já vem de trás. Ele sabe que dar nome às coisas é fazê-las existir, omitir o nome de alguém é uma violência terrível que os sistemas burocráticos souberam usar na perfeição. É que, não obstante esta tentativa de apagar Margarida, o poeta não decidia um só plano dos filmes sem a ouvir. “Trabalhei com eles depois de ter sido aluno do António na Escola Superior de Cinema. Eles eram delicados e ouviam-me, mas tudo já estava decidido pelos dois, formavam uma dupla quase impenetrável”, conta ao Observador o cineasta e discípulo de António Reis, Manuel Mozos.
"Tenho nome
nome
Tem nome um tecido
um objecto
o vento
Oh murmúrio
de lábios juntos
no tempo que me esconde.”
Mozos lembra-se como António Reis era “intransigente” e, ao mesmo tempo, muito sensível, “terrivelmente sensível” às injustiças. “Era um homem capaz de uma frontalidade que nos deixava aturdidos. Um dia fomos ver o filme/trabalho final de um colega do último ano. O filme estava quase pronto. Quando acabámos a visualização o António disse ao rapaz que dali só se aproveitavam quatro planos. O rapaz alegou que em quatro planos não conseguia contar a história. António respondeu que contar histórias não era importante. Era assim, esmagador. Mas depois também se ria muito e chorava com enorme facilidade.”
"Chega a ter gosto
a chuva
vista dos cafés
caindo sobre as estátuas
e a nostalgia
chega a ser morna
com fumo e álcool
na garganta
Até os homens
passarem junto aos vidros
Reais Molhados
Sem emoções instruídas
Pensando em remédios
e prestações
grisalhos
sem serem velhos
e falando sós
sem serem loucos”
Em 1976, já em parceria com Margarida Cordeiro, realiza “Trás-os- Montes”, um filme onde a memória surge novamente como eixo central mas onde ele faz intervir a imaginação, as lendas, os mitos, onde as vozes dos homens e a voz da natureza se unificam, onde, tal como nos seus poemas, o mundo chega menos através da visão e mais do tato, do gosto, da intuição, da intimidade averbal dos corpos. Em tempos de revolução, o filme não era bem o que o povo queria ver e a estreia em Portugal não correu bem. Já a sua estreia internacional pôs de novo a crítica aos pés de António Reis e Margarida Cordeiro. De Portugal chegava afinal o mais excitante cinema europeu, com a marca dos filmes e das ideias de Robert Bresson e feito com uma extraordinária economia de meios, sem atores profissionais, com um estética que nunca é separável da ética. Um objeto artístico complexo, senão mesmo perigoso, para quem gosta de ter os tempos e homens arrumados em categorias prontas a usar.
Se um dia se meteu no comboio e foi a França bater à porta do filósofo Gaston Bachelard, e o encontrou a descascar batatas porque estava a fazer o jantar para a filha, António Reis começou a corresponder-se com a mesma naturalidade com a filósofa e escritora búlgara Julia Kristeva, conheceu Marguerite Duras, viajou, ganhou prémios importantes sempre sob a maior indiferença do meio cultural e político português. Em 1982 realiza Ana e em 1989 Rosa de Areia. Quando morreu tinha como projeto fazer um filme a partir da obra do escritor mexicano Juan Rulfo, Pedro Páramo.
Íntimo, subtil, discreto, nunca fez nada para se impor como poeta nem como cineasta. Para ele a poesia e o cinema nada tinham de privilégio, eram aquele mínimo que lhe permitia ter esperança e dignidade. William Carlos Williams, um poeta onde encontramos muitas semelhanças com Reis, dizia que a poesia “era um equipamento de sobrevivência para a vida física e psíquica”. É esta função simples da poesia que encontramos em Patterson, o poeta condutor de autocarros de Jarmusch.
Tal como fez Carlos Williams com vários autores da Beat Generation, também Reis, na sua encarnação como poeta, foi um divulgador de jovens poetas, entre eles Manuel António Pina, que deixa aqui, o testemunho desses dias. Também Manuel Mozos lembra as aulas de António Reis:
“Eram momentos fascinantes, não só pela sua aura de cineasta de culto, mas também por tudo o que ele fazia confluir para ali: literatura, poesia, artes plásticas, música, banda desenhada do Crasy Cat, os álbuns de imagens da Leni Riefenstahl (…) Falava muito do Rimbaud, do Baudelaire, Allan Poe, poesia e pintura japonesas, mas raramente falava dos seus contemporâneos. Ele era uma esponja, conhecia tudo, estava atento a tudo. Por vezes, depois da aula acabada, íamos com ele para o jardim do Príncipe Real e ficávamos horas a conversar ou apenas a ouvi-lo. Ele marcou profundamente muita gente. Em primeiro lugar Pedro Costa, que é provavelmente, o cineasta cuja obra tem uma filiação profunda no cinema de Reis, mas também João Pedro Rodrigues, Vítor Gonçalves e eu próprio. Mesmo o João César Monteiro, em ‘Veredas’, mostra uma grande proximidade com o cinema de António Reis”.
Margarida e as outras mulheres misteriosas do poeta
“Sei que choras
muitas vezes
sozinha
e que lavas
o rosto
(ah onde
ando eu)
Para a tua dor
não ser minha”
Quando escreveu a sua poesia António Reis ainda não conhecia Margarida Cordeiro. Sabe-se vagamente que teve um casamento, talvez uma filha, nada confirmado. Manuel Mozos diz apenas: “Havia um grande mistério em torno disso”. Terá conhecido Margarida Cordeiro, psiquiatra, a trabalhar no hospital Conde Ferreira, no Porto, no final dos anos 60 ou início de 70. Ela, muito mais nova conta a história numa entrevista dada a Alexandra Lucas Coelho, em 2009: que “se conheceram num concerto no Palácio de Cristal”, que “não gostou dele” e que algum tempo depois o poeta lhe “enviou o livro de Rilke, Cartas a um Jovem Poeta, e um cartão a perguntar ‘está mais bem disposta?'”. O irmão avisou-a que “ele era um homem casado”. Mas por ele Margarida será expulsa “à bofetada” de casa pelos pais com quem cortou relações durante 15 anos até lhes nascer a filha Ana.
Margarida também tinha fama de ter uma personalidade difícil, de falar pouco, de ser um bicho do mato. Era muito bonita e delicada como uma bailarina de Degas. Juntos faziam um par improvável e intangível. O seu mundo conjunto dava-se a ver no cinema que criaram. “Todos os dias Margarida saía do Hospital Miguel Bombarda onde trabalhou até se reformar e vinha ter com o António para discutir os filmes, não fazíamos nada sem ela dar a sua opinião”, recorda Manuel Mozos. “Uma das suas ortodoxias era não permitirem que os filmes fossem feitos noutro suporte que não a película e que fossem vistos noutro formato que não em sala de cinema. Antes de António morrer houve uma chatice com a produtora, um corte de relações, o que faz com que os filmes não possam hoje ainda ser comercializados”, explica o cineasta.
Mas antes de conhecer Margarida, a figura feminina já era uma constante nos poemas de António Reis. Mulheres dentro de geografias íntimas, onde as mãos, os corpos deitados, a respiração, as tarefas domésticas anulam o tempo através da força, da sua presença no espaço. Elas as senhoras do labirinto, as detentoras de uma sabedoria ancestral, o que elas calam é inverificável e serve ao poeta para nos dizer dos mistérios e assombros da condição humana.
As figuras femininas e os objetos domésticos dos poemas de Reis só têm paralelo noutro poeta da imagem, Bela Tarr, em especial no filme “Cavalo de Turim”, onde, tal como em Reis, o ambiente fechado, quase concentracionário, a repetição, o hábito, até a erosão da rotina, das dúvidas, da falta de dinheiro, dos desencontros servem para ele traçar o seu quadro do desespero humano e, ao mesmo tempo, fazer transparecer a dimensão sagrada das ligações, dos objetos, da casa. “Só as casas explicam que exista/uma palavra como intimidade”, escreveu Ruy Belo. Mas Reis não enuncia a partir de uma compreensão exterior, demonstra a partir de uma sensação interior:
"Sei
ao chegar a casa
qual de nós
voltou primeiro do emprego
Tu
se o ar é fresco
eu
se deixo de respirar
subitamente”
Morreu, em 1991, em consequência de uma gripe que se agravou para pneumonia, “em parte pelas habituais recusas do poeta em consultar um médico, mas também talvez pelo desanimo em que ele estava por não conseguir subsídios para filmar”, diz Manuel Mozos. Quando morreu era tão ignorado pelo meio cultural e político português como é hoje. Os prémios e reconhecimento vieram (quase) todos de fora de Portugal e de alguns amigos eletivos. Não houve uma figura de Estado a comparecer no seu funeral. Tão importante como os filmes e a poesia de Reis são para conhecer a literatura, a poesia da segunda metade do século XX português é compreender que meio cultural, editorial e académico é este cujas regras, disciplinas e “vontade de não saber” permitiram que este poeta ficasse apagado durante 50 anos.
Joana Emídio Marques
Jornal Observador, online, de 6 de Agosto de 2017, 18:23.
O rosto não é familiar. Podia ser um camponês de Trás-os-Montes ou do Alentejo, podia ser um asilado há décadas, podia ser um funcionário anónimo de uma fábrica qualquer. Era certamente um homem. E isso era tudo o que ele queria que soubéssemos: que ele não era um pássaro, uma ideia, um conceito, era um homem cuja dignidade passava por ter o direito ao nome e à palavra. O rosto não é familiar. A poesia que já tão poucos lembram é talvez a que mais afinidades tem com a de William Carlos Williams que, por estes dias, é evocado no filme Paterson de Jim Jarmusch: o quotidiano sem ornamentos postiços mas como uma interrogação ética, o verso curto, as imagens enganadoramente simples como indícios do sagrado, que nos impelem para o enigma que cada objeto, cada gesto, cada corpo carrega. Poemas Quotidianos de António Reis não é apenas o grande acontecimento poético-literário do ano é também (para quem o quiser ouvir) uma cratera que se abre e expõe, sem cerimónia, a fraqueza e a gratuitidade da poesia que por estes dias se escreve e se publica sem cessar.
António Reis, mais conhecido como cineasta, autor com Margarida Cordeiro de filmes fundamentais do novo cinema português como Jaime (1973), Trás-os-Montes, Ana ou Rosa de Areia, chegou a ser, nos anos 70 e 80, o nosso realizador com mais protagonismo internacional a par com Manoel de Oliveira. Os poemas com palavras escreveu-os até final dos anos 50 e deixou-os em dois livros: Poemas Quotidianos (1957) e Novos Poemas Quotidianos (1960). Depois, passou a escrever com imagens, uma poesia de igual ou maior fulgor mas com a mesma estranheza, o mesmo peso, a mesma lentidão, a mesma decomposição da luz e dos tempos, sobretudo, a mesma urgência em se bater pelo direito do homem, de todos os homens a existirem com esperança e dignidade.
Morreu há 16 anos. Os seus poemas não eram reeditados há 50 anos (a última edição aconteceu em 1967 na coleção Poetas de Hoje da editora Portugalia) e os seus filmes há muito que não saem dos arquivos da Cinemateca. Poemas Quotidianos, acabado de publicar na coleção de poesia da Tinta da China, faz-nos ouvir de novo a voz de António Reis a exigir: “quero que me oiçam”. E ouvi-lo, lê-lo é a melhor coisa que aconteceu em muito tempo na Poesia Portuguesa.
Há, em torno dele, muitos mistérios, muita gente que não quer falar, desde a filha Ana Reis, a colaboradores. Há a presença silenciosa e espectral da inacessível Margarida Cordeiro sua segunda mulher e co-autora dos seus filmes, que há quase duas décadas se isolou numa aldeia de Trás-os -Montes. Na sua vida, no seu cinema, como na sua poesia tudo é enganadoramente simples e tudo está sempre na iminência de escapar ao que julgávamos saber.
"Sobretudo poeta.
Como esse pequeno homem de boné, imagem de um operário anónimo na rua da cidade que não era sua, na mão o saco das compras com os mantimentos apenas necessários, a cara chupada, mas os olhos, olhos brilhantes alimentados de todas as meteorologias, pois, como esse ‘fora de jogo’, levantava o mundo para ser visto, para nosso conhecimento.” [Jorge Listopad, 1991]
Um poeta vertical
Naqueles anos de ditadura e neo-realismo o jovem António Reis, de origens humildes, nascido em Valadares (Vila Nova de Gaia), que andou no mar com os vareiros da Afurada, que trabalhou nos escritórios da Vista Alegre, que surgiu como poeta na revista de poesia Notícias do Bloqueio (1957 e 1961) tinha poucas semelhanças com a poesia combativa e ideologicamente marcada da segunda geração de poetas neo-realistas dos anos 50. Está lá um olhar crítico sobro o mundo, sobre a ditadura, sobre a miséria mas de forma muito mais subtil e muito mais complexa. O “povo” representado por Reis não é coletivo. É individual, interior, ambíguo, obscuro. Os ângulos da sua visão poética são excêntricos, como mais tarde foram os planos no cinema que criou. Por isso, aquilo que nele se chama “Real” é, por natureza, incompreensível na sua totalidade e, certamente, nunca redutível às formas estéticas que as ideologias políticas do tempo impunham. A crueldade do mundo mostra-se não apenas nos gestos de um dia-a-dia de miséria e vergonha, mas também na crueldade de tudo o que escapa aos nossos olhos, à nossa sabedoria. Reis trabalhava com imagens e tempos heterogéneos, com reminiscências e memórias, impressões fugidias que não podiam, nem poder, servir como mero cabide para os fantasmas de uma época.
"Andávamos com os “Poemas quotidianos” no bolso, partilhávamo-los avaramente, nos cafés e nas longas noites solitárias da adolescência, como um fogo comum, um sinal que nos identificava uns aos outros como membros da mesma tribo errante; éramos todos jovens, ou julgávamos que éramos, e acreditávamos, naqueles tempos controversos, que nos havia sido dado o dom de, pela poesia, compreender e mudar o mundo e a vida. António Reis não o sabia, mas todas as palavras que então possuíamos eram as suas". [Manuel António Pina sobre António Reis, Maio de 1992]
Os homens da poesia de António Reis não são ignaros da sua condição, não precisam de um bardo que, de cima, lhes revele a verdade sobre a sua vida. Pelo contrario, como o próprio poeta, eles são donos de uma sabedoria sedimentada de muitas experiências de angústia, melancolia, alegrias breves, de segredos. São portadores de uma sabedoria milenar que lhes agudiza a consciência do presente e do futuro, logo do sofrimento. Como escreve o filósofo Giorgio Colli, sobre as origens da sabedoria: o conhecimento é sempre, antes de tudo, o conhecimento da dor. Essa é a grande vingança dos Deuses, aquele que vê, aquele que sabe, é aquele que mais sofre.
António Reis escolhe falar através do quotidiano, não porque este transporte uma maior verdade, mas porque esse quotidiano é apenas aparência, ilusão, em última instância é o caminho para o mundo que se esconde, não menos cruel, não menos desumano, mas onde brilha qualquer coisa de sagrado. Não há nesta poesia beatitude, purificação, não há utopias, nem luta de classes. A única redenção possível é ganhar o direito a ter um nome, logo uma dignidade. Neste sentido, esta lírica não pode estar mais longe daquilo que hoje escrevem os chamados “poetas do quotidiano”, do alto das suas vidas confortáveis e das suas muitas certezas mas de onde não brota qualquer empatia com as vidas comuns, anónimas mas apenas a sua objetificação como material de construção de imagens poéticas movidas a intensidades postiças.
Não nos deixemos pois cair na armadilha simplificadora da palavra “quotidiano”. A poesia de Reis é tudo menos simples e uma leitura superficial pode prestar-se a muitos enganos. Na verdade, toda a obra deste autor, seja a poesia, seja o cinema, é profundamente enigmática. Cada verso abre para múltiplas significações, cada gesto banal descrito é apenas o início de um espanto que nos vai conduzir a terríveis indagações, a imagens prenhes de novas imagens, que tão depressa se abrem ante os nossos olhos como se subtraem deixando-nos apenas a certeza de que é preciso ficar muito tempo naquele labirinto para aceder aos pequenos milagres que nele se escondem. Cada poema é um fragmento cuja força íntima nos deixa obrigatoriamente despidos de referencialidades fáceis.
"Mudamos esta noite
E como tu
eu penso no fogão a lenha
e nos colchões
onde levar as plantas
e como disfarçar os móveis velhos
Mudamos esta noite
e não sabíamos que os mortos ainda aqui viviam
e que os filhos dormem sempre
nos quartos onde nascem
Vai descendo tu
Eu só quero ouvir os meus passos
nas salas vazias.”
Animais como retratos de príncipes
Provavelmente a melhor forma de compreender como a poesia de António Reis extravasa esta dimensão “quotidiana” é vendo o seu cinema. Também aí a sua obra se constrói como algo absolutamente ímpar no cinema Português. Tal como a sua poesia estava nas margens do Neorealismo, a sua cinematografia tem o mesmo projeto ético de devolver a dignidade ao homem. Jaime (1974) o seu primeiro filme, (depois de ter colaborado com Manoel de Oliveira em Auto da Primavera (1962) e com Paulo Rocha em Mudar de Vida, 1966) representa a mesma luta pela dignificação do homem nas suas circunstâncias mais extremas sem deixar de ser uma crítica velada à ditadura a vida desse homem, Jaime Fernandes, encarcerado no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda durante mais de três décadas, onde começa a desenhar criando uma obra plástica singular de criaturas entre o animal e o humano, atravessadas por ecos de um tempo imemorial e gritos dos seu terrível presente. Não muito diferente da poesia, onde Reis também trabalhou sempre mais dentro das imagens que dentro das palavras, para estilhaçar o tempo cronológico e com isso falar de experiências que simultaneamente nos precedem, nos afetam e permanecem muito além da nossa passagem pelo mundo. As imagens são a memória, a duração, os homens e as suas circunstâncias individuais são efémeros, frágeis.
A média-metragem Jaime conta-nos a história deste doente esquizofrénico através dos desenhos e cartas que ele deixou, mas também através das paredes circulares do hospício, evocando a teoria da vigilância panóptica desenvolvida por Michel Foucault. Estamos submetidos a uma vigilância total que acaba por ser internalizada pelos indivíduos que passam a ser os primeiros vigilantes de si mesmos e dos seus pares. Eis como opera um estado vigilante, seja em ditadura seja em democracia: criando fronteiras entre a loucura e normalidade, definindo o que fica na sombra e o que deve ser visto. Afinal também António Reis acabou por ser ele próprio, como poeta e como cineasta colocado num “ângulo morto” do meio literário e cultural português.
Jaime, proibido pela censura, acabou por se estrear pouco dias depois da Revolução, em conjunto com o Couraçado de Potemkin de Sergei Eisenstein, fez uma fulgurante carreira internacional, arrebatou vários prémios mas era ainda e sempre António Reis a devolver ao homem a sua memória, o seu mistério, a impor o seu olhar absolutamente indiferente às modas e aos códigos vigentes. O filme, com música de Louis Armstrong, Stockhausen, Teleman, cria uma harmonia que esconde para melhor dar a ver o terrível drama da vida deste homem sem nunca cair na romantização da loucura, uma imagem obscenamente gasta por artistas sem talento. Sobre ele declarou João César Monteiro: “Um dos mais belos filmes da história do cinema, uma etapa decisiva na história do cinema moderno”.
"A Margarida Cordeiro descobriu no hospital os desenhos do Jaime, e o António explicou aos sócios o que queria fazer, com aquele calor humano que só ele tinha. As pessoas ficaram apaixonadas pelo projeto, e como eu era presidente do centro aproveitei para pedinchar a ajuda de todos. Uns deram restos de película, o Acácio trouxe a equipa de imagem e o material, o filme foi nascendo numa atmosfera extraordinária de camaradagem. O resultado causou uma emoção considerável, e o António ganhou com ele na Alemanha o primeiro dos três grandes prémios internacionais que os seus filmes viriam a obter.” [ Paulo Rocha, cineasta, 1991]
É certo que António Reis tinha um feitio difícil, uma provocativa indiferença por tudo o que o rodeava e isso não lhe granjeou facilidades no mundo do cinema, onde o dinheiro é curto e os subsídios escassos. “Vivia no interior dos seus filmes e dos seus poemas, numa espécie de autismo obstinado”, escreveu Eduardo Prado Coelho, que foi desde o início um entusiasta da poesia de Reis, num incomum consenso com João Gaspar Simões, detentor do lugar de principal crítico literário do sistema, lugar que, de resto, Prado Coelho viria mais tarde a assumir ele próprio.
Outro dos combates de António Reis foi pelo direito de Margarida Cordeiro, co-realizadora dos seus filmes, a ter o seu nome associado às obras. Durante anos a imprensa falava dos filmes como se fossem feitos apenas por António Reis e omitia o nome de Margarida o que o deixava furioso e o levou a apresentar queixas contra os jornais em várias instâncias. Como podemos ver agora que a sua obra poética voltou a ver a luz do dia, o ato de nomear e a importância do nome como afirmação de uma individualidade e de uma dignidade são algo que já vem de trás. Ele sabe que dar nome às coisas é fazê-las existir, omitir o nome de alguém é uma violência terrível que os sistemas burocráticos souberam usar na perfeição. É que, não obstante esta tentativa de apagar Margarida, o poeta não decidia um só plano dos filmes sem a ouvir. “Trabalhei com eles depois de ter sido aluno do António na Escola Superior de Cinema. Eles eram delicados e ouviam-me, mas tudo já estava decidido pelos dois, formavam uma dupla quase impenetrável”, conta ao Observador o cineasta e discípulo de António Reis, Manuel Mozos.
"Tenho nome
nome
Tem nome um tecido
um objecto
o vento
Oh murmúrio
de lábios juntos
no tempo que me esconde.”
Mozos lembra-se como António Reis era “intransigente” e, ao mesmo tempo, muito sensível, “terrivelmente sensível” às injustiças. “Era um homem capaz de uma frontalidade que nos deixava aturdidos. Um dia fomos ver o filme/trabalho final de um colega do último ano. O filme estava quase pronto. Quando acabámos a visualização o António disse ao rapaz que dali só se aproveitavam quatro planos. O rapaz alegou que em quatro planos não conseguia contar a história. António respondeu que contar histórias não era importante. Era assim, esmagador. Mas depois também se ria muito e chorava com enorme facilidade.”
"Chega a ter gosto
a chuva
vista dos cafés
caindo sobre as estátuas
e a nostalgia
chega a ser morna
com fumo e álcool
na garganta
Até os homens
passarem junto aos vidros
Reais Molhados
Sem emoções instruídas
Pensando em remédios
e prestações
grisalhos
sem serem velhos
e falando sós
sem serem loucos”
Em 1976, já em parceria com Margarida Cordeiro, realiza “Trás-os- Montes”, um filme onde a memória surge novamente como eixo central mas onde ele faz intervir a imaginação, as lendas, os mitos, onde as vozes dos homens e a voz da natureza se unificam, onde, tal como nos seus poemas, o mundo chega menos através da visão e mais do tato, do gosto, da intuição, da intimidade averbal dos corpos. Em tempos de revolução, o filme não era bem o que o povo queria ver e a estreia em Portugal não correu bem. Já a sua estreia internacional pôs de novo a crítica aos pés de António Reis e Margarida Cordeiro. De Portugal chegava afinal o mais excitante cinema europeu, com a marca dos filmes e das ideias de Robert Bresson e feito com uma extraordinária economia de meios, sem atores profissionais, com um estética que nunca é separável da ética. Um objeto artístico complexo, senão mesmo perigoso, para quem gosta de ter os tempos e homens arrumados em categorias prontas a usar.
Se um dia se meteu no comboio e foi a França bater à porta do filósofo Gaston Bachelard, e o encontrou a descascar batatas porque estava a fazer o jantar para a filha, António Reis começou a corresponder-se com a mesma naturalidade com a filósofa e escritora búlgara Julia Kristeva, conheceu Marguerite Duras, viajou, ganhou prémios importantes sempre sob a maior indiferença do meio cultural e político português. Em 1982 realiza Ana e em 1989 Rosa de Areia. Quando morreu tinha como projeto fazer um filme a partir da obra do escritor mexicano Juan Rulfo, Pedro Páramo.
Íntimo, subtil, discreto, nunca fez nada para se impor como poeta nem como cineasta. Para ele a poesia e o cinema nada tinham de privilégio, eram aquele mínimo que lhe permitia ter esperança e dignidade. William Carlos Williams, um poeta onde encontramos muitas semelhanças com Reis, dizia que a poesia “era um equipamento de sobrevivência para a vida física e psíquica”. É esta função simples da poesia que encontramos em Patterson, o poeta condutor de autocarros de Jarmusch.
Tal como fez Carlos Williams com vários autores da Beat Generation, também Reis, na sua encarnação como poeta, foi um divulgador de jovens poetas, entre eles Manuel António Pina, que deixa aqui, o testemunho desses dias. Também Manuel Mozos lembra as aulas de António Reis:
“Eram momentos fascinantes, não só pela sua aura de cineasta de culto, mas também por tudo o que ele fazia confluir para ali: literatura, poesia, artes plásticas, música, banda desenhada do Crasy Cat, os álbuns de imagens da Leni Riefenstahl (…) Falava muito do Rimbaud, do Baudelaire, Allan Poe, poesia e pintura japonesas, mas raramente falava dos seus contemporâneos. Ele era uma esponja, conhecia tudo, estava atento a tudo. Por vezes, depois da aula acabada, íamos com ele para o jardim do Príncipe Real e ficávamos horas a conversar ou apenas a ouvi-lo. Ele marcou profundamente muita gente. Em primeiro lugar Pedro Costa, que é provavelmente, o cineasta cuja obra tem uma filiação profunda no cinema de Reis, mas também João Pedro Rodrigues, Vítor Gonçalves e eu próprio. Mesmo o João César Monteiro, em ‘Veredas’, mostra uma grande proximidade com o cinema de António Reis”.
Margarida e as outras mulheres misteriosas do poeta
“Sei que choras
muitas vezes
sozinha
e que lavas
o rosto
(ah onde
ando eu)
Para a tua dor
não ser minha”
Quando escreveu a sua poesia António Reis ainda não conhecia Margarida Cordeiro. Sabe-se vagamente que teve um casamento, talvez uma filha, nada confirmado. Manuel Mozos diz apenas: “Havia um grande mistério em torno disso”. Terá conhecido Margarida Cordeiro, psiquiatra, a trabalhar no hospital Conde Ferreira, no Porto, no final dos anos 60 ou início de 70. Ela, muito mais nova conta a história numa entrevista dada a Alexandra Lucas Coelho, em 2009: que “se conheceram num concerto no Palácio de Cristal”, que “não gostou dele” e que algum tempo depois o poeta lhe “enviou o livro de Rilke, Cartas a um Jovem Poeta, e um cartão a perguntar ‘está mais bem disposta?'”. O irmão avisou-a que “ele era um homem casado”. Mas por ele Margarida será expulsa “à bofetada” de casa pelos pais com quem cortou relações durante 15 anos até lhes nascer a filha Ana.
Margarida também tinha fama de ter uma personalidade difícil, de falar pouco, de ser um bicho do mato. Era muito bonita e delicada como uma bailarina de Degas. Juntos faziam um par improvável e intangível. O seu mundo conjunto dava-se a ver no cinema que criaram. “Todos os dias Margarida saía do Hospital Miguel Bombarda onde trabalhou até se reformar e vinha ter com o António para discutir os filmes, não fazíamos nada sem ela dar a sua opinião”, recorda Manuel Mozos. “Uma das suas ortodoxias era não permitirem que os filmes fossem feitos noutro suporte que não a película e que fossem vistos noutro formato que não em sala de cinema. Antes de António morrer houve uma chatice com a produtora, um corte de relações, o que faz com que os filmes não possam hoje ainda ser comercializados”, explica o cineasta.
Mas antes de conhecer Margarida, a figura feminina já era uma constante nos poemas de António Reis. Mulheres dentro de geografias íntimas, onde as mãos, os corpos deitados, a respiração, as tarefas domésticas anulam o tempo através da força, da sua presença no espaço. Elas as senhoras do labirinto, as detentoras de uma sabedoria ancestral, o que elas calam é inverificável e serve ao poeta para nos dizer dos mistérios e assombros da condição humana.
As figuras femininas e os objetos domésticos dos poemas de Reis só têm paralelo noutro poeta da imagem, Bela Tarr, em especial no filme “Cavalo de Turim”, onde, tal como em Reis, o ambiente fechado, quase concentracionário, a repetição, o hábito, até a erosão da rotina, das dúvidas, da falta de dinheiro, dos desencontros servem para ele traçar o seu quadro do desespero humano e, ao mesmo tempo, fazer transparecer a dimensão sagrada das ligações, dos objetos, da casa. “Só as casas explicam que exista/uma palavra como intimidade”, escreveu Ruy Belo. Mas Reis não enuncia a partir de uma compreensão exterior, demonstra a partir de uma sensação interior:
"Sei
ao chegar a casa
qual de nós
voltou primeiro do emprego
Tu
se o ar é fresco
eu
se deixo de respirar
subitamente”
Morreu, em 1991, em consequência de uma gripe que se agravou para pneumonia, “em parte pelas habituais recusas do poeta em consultar um médico, mas também talvez pelo desanimo em que ele estava por não conseguir subsídios para filmar”, diz Manuel Mozos. Quando morreu era tão ignorado pelo meio cultural e político português como é hoje. Os prémios e reconhecimento vieram (quase) todos de fora de Portugal e de alguns amigos eletivos. Não houve uma figura de Estado a comparecer no seu funeral. Tão importante como os filmes e a poesia de Reis são para conhecer a literatura, a poesia da segunda metade do século XX português é compreender que meio cultural, editorial e académico é este cujas regras, disciplinas e “vontade de não saber” permitiram que este poeta ficasse apagado durante 50 anos.
Jornal Observador, online, de 6 de Agosto de 2017, 18:23.
sábado, maio 16, 2020
230. António Reis, o poeta - por José Carlos de Vasconcelos
[Poesia]
Editorial
António Reis, o poeta
Entre os muitos livros que recebo, um me acaba de chegar que me deu especial prazer e alegria: Poemas Quotidianos, de António Reis. Porque o António Reis (1927-1991) foi uma rara figura humana, com quem criei uma forte ligação desde que o conheci, em circunstâncias que desde logo me atestaram a sua afetividade e singularidade. Porque estes seus poemas são dos mais singelamente belos, humanos, da nossa lírica do século XX. Porque nunca deixava de os dizer nas numerosas sessões de poesia que fazia antes do 25 de Abril, contrastando eles, na sua fantástica concisão, com muitos outros de "intervenção" que dizia, e sendo particularmente valorizados com a música de Carlos Paredes que, de improviso, os(me) ia acompanhando com a sua guitarra.
Porque, mais, era inadmissível estes poemas estarem há décadas inacessíveis ao público: última edição a da Portugália, em 1967, com prefácio do Eduardo (Prado Coelho). E porque, enfim, por tudo isto eu próprio tive há muito a ideia/intenção de os reeditar, o que por vários motivos acabei lamentavelmente por não fazer. Pretendia eu, aliás, acrescentar aos cem poemas da edição da Portugália - que reunia os dos Poemas Quotidianos, de 1957, e Novos Poemas Quotidianos, de 1960, mais alguns inéditos -, novos poemas inéditos, da mesma linha, que sei entretanto o António Reis (AR) escrevera e alguns dos quais eu publiquei no Diário de Notícias quando estive na sua direção, após o 25 de Abril.
Sem nunca deixar de ser o poeta que sempre foi, a forma de expressão artística privilegiada que ao AR se impôs, a partir de certa altura, deixou de ser a da poesia para passar a ser a do cinema. Cinema que de resto sempre foi uma paixão e atividade sua, e no qual deixou uma obra tão assinalável que para um Pedro Costa representou "a oportunidade de passar a ter um passado no cinema português". Só que, ao contrário do que seria natural e desejável, a obra do cineasta não chamou mais a atenção para o poeta, antes contribuiu para o seu tão injusto esquecimento ou mesmo apagamento.
Quando o poeta não é "menor" que o cineasta e não há nos seus filmes muito do que existe nos seus versos de um "realismo intimista", um lirismo tão comovido como contido, em que as coisas aparentemente "banais" do dia-a-dia ganham uma dimensão e uma beleza, as mais das vezes melancólica, únicas.
Por agora limito-me a chamar a atenção dos leitores para Poemas Quotidianos, (re)lançados com a chancela da Tinta da China, em coleção dirigida por Pedro Mexia - a quem se fica, pois, a dever a escolha e publicação -, com prefácio do excelente prof. e crítico Fernando J. B. Martinho, e posfácio do realizador Joaquim Sapinho. Mas se nestas colunas do JL sempre demos o justo relevo ao trabalho de António Reis, muito gostaria de proximamente a ele voltar como merece, aproveitando esta reedição e, talvez, o facto de se vivo fosse o António Reis fazer 90 anos a 27 de agosto próximo.
José Carlos de Vasconcelos
Jornal JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, p. 3, de 19 de Julho a 1 de Agosto de 2017.
Porque, mais, era inadmissível estes poemas estarem há décadas inacessíveis ao público: última edição a da Portugália, em 1967, com prefácio do Eduardo (Prado Coelho). E porque, enfim, por tudo isto eu próprio tive há muito a ideia/intenção de os reeditar, o que por vários motivos acabei lamentavelmente por não fazer. Pretendia eu, aliás, acrescentar aos cem poemas da edição da Portugália - que reunia os dos Poemas Quotidianos, de 1957, e Novos Poemas Quotidianos, de 1960, mais alguns inéditos -, novos poemas inéditos, da mesma linha, que sei entretanto o António Reis (AR) escrevera e alguns dos quais eu publiquei no Diário de Notícias quando estive na sua direção, após o 25 de Abril.
Sem nunca deixar de ser o poeta que sempre foi, a forma de expressão artística privilegiada que ao AR se impôs, a partir de certa altura, deixou de ser a da poesia para passar a ser a do cinema. Cinema que de resto sempre foi uma paixão e atividade sua, e no qual deixou uma obra tão assinalável que para um Pedro Costa representou "a oportunidade de passar a ter um passado no cinema português". Só que, ao contrário do que seria natural e desejável, a obra do cineasta não chamou mais a atenção para o poeta, antes contribuiu para o seu tão injusto esquecimento ou mesmo apagamento.
Quando o poeta não é "menor" que o cineasta e não há nos seus filmes muito do que existe nos seus versos de um "realismo intimista", um lirismo tão comovido como contido, em que as coisas aparentemente "banais" do dia-a-dia ganham uma dimensão e uma beleza, as mais das vezes melancólica, únicas.
Por agora limito-me a chamar a atenção dos leitores para Poemas Quotidianos, (re)lançados com a chancela da Tinta da China, em coleção dirigida por Pedro Mexia - a quem se fica, pois, a dever a escolha e publicação -, com prefácio do excelente prof. e crítico Fernando J. B. Martinho, e posfácio do realizador Joaquim Sapinho. Mas se nestas colunas do JL sempre demos o justo relevo ao trabalho de António Reis, muito gostaria de proximamente a ele voltar como merece, aproveitando esta reedição e, talvez, o facto de se vivo fosse o António Reis fazer 90 anos a 27 de agosto próximo.
José Carlos de Vasconcelos
Jornal JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, p. 3, de 19 de Julho a 1 de Agosto de 2017.
sexta-feira, maio 15, 2020
229. "Poemas Quotidianos" - Crítica de Pedro Mexia
[Poesia]
poemas quotidianos
Poeta da segunda geração do neo‑realismo português, ligado à revista portuense Notícias do Bloqueio, António Reis afastou‑se da dimensão retórica e declarativa de boa parte dos neo‑realistas, preferindo o despojamento do verso, a emoção contida, o intimismo melancólico. Os poemas de Reis são sobre vidas comuns, marcadas pelo trabalho e a alienação, a fadiga e o descanso, o tédio e a solidão, os grandes medos e os pequenos prazeres, a dignidade e a opressão. Embora "quotidianos", estes textos escolhem certos objectos que observam de um modo, digamos, cinematográfico, e a partir deles edificam um "espaço interior" de indagação ética. Tomando "o partido das coisas" (à imagem de alguns poetas franceses do pós‑guerra, como Ponge ou Guillevic), o poeta considera o jornal, a maçã, a camisa, a jarra, o maço de cigarros, o pente, e "arranca às coisas o que elas sabem a respeito do homem" (Gaëtan Picon). A penúria material e o sonambulismo da existência são assim gémeos da constância e da duração no tempo. E manifestam‑se num fulgurante elogio da fraternidade e da conjugalidade.
Pedro Mexia
António Reis - Poemas Quotidianos, Tinta da China, Lisboa, 2017.
Pedro Mexia
António Reis - Poemas Quotidianos, Tinta da China, Lisboa, 2017.
quarta-feira, maio 13, 2020
228. "Poemas Quotidianos", 1967 e 2017
[Imagem de Cais do Olhar]
António Reis - Poemas Quotidianos, colecção Poetas de Hoje n.º 25, Portugália Editora, Lisboa, 1967. Esta obra teve Prefácio de Eduardo Prado Coelho, representante da "nova" crítica, e "Resposta" de João Gaspar Simões, representante da "velha" crítica.
António Reis - Poemas Quotidianos, Tinta da China, Lisboa, 2017. Esta obra tem Prefácio de Fernando J. B. Martinho e Posfácio de Joaquim Sapinho. Na badana direita, apresenta-se uma breve biografia de António Reis e na badana do lado esquerdo uma breve crítica de Pedro Mexia, coordenador da colecção de poesia.
domingo, maio 10, 2020
227. SÓ O BARBEIRO
Só o barbeiro
julga que adormeço
saboreio
o tempo
Sigo as bicadas
a desenharem-me no pescoço
a sombra das orelhas
rio com as cócegas
vejo
como na infância
a mão pousando a tesoura em forma de A
oiço falar de jogos
E adormeço
António Reis - Poemas Quotidianos, Portugália (col. «Poetas de Hoje»), Lisboa, 1967; p. 114, Tinta da China, Lisboa, 2017.
julga que adormeço
saboreio
o tempo
Sigo as bicadas
a desenharem-me no pescoço
a sombra das orelhas
rio com as cócegas
vejo
como na infância
a mão pousando a tesoura em forma de A
oiço falar de jogos
E adormeço
António Reis - Poemas Quotidianos, Portugália (col. «Poetas de Hoje»), Lisboa, 1967; p. 114, Tinta da China, Lisboa, 2017.
sábado, maio 09, 2020
226. "TRÁS-OS-MONTES" na "Positif"
[Estreia em Paris, 22 de Março de 1978]
Trás Os Montes
Portugais, de Antonio de Reis et Margarida Cordeiro
Trás Os Montés ne se présente pas comme un documentaire, ni même comme un document sur la réalité sociale et culturelle de cette région de Trás os Montés, Nord-Est du Portugal. Pour cela il eût fallu que cette réalité fût connue d'avance, qu'elle existe a priori avant l'oeuvre d'Antonio Reis et Margarida Cordeiro vient d'avoir fait de la caméra un moyen d'investigation plutôt qu'un objet d'enregistrement.
Le premier plan du film découvre une chaîne de montagnes au cours d'un lent panoramique tandis que la bande sonore réinvente les bruits de la nature, un chant perdu dans la montagne, les mouvements des troupeaux. À la manière de ces cinéastes qui dévoilent toute la thématique de leur oeuvre dès les premières images, au moment où la disponibilité du spectateur est la plus éveillée - mais aussi la moins avertie - cette ouverture pose d'emblée le sujet du film. Les montagnes qui font écran, qui isolent leurs habitants aux confins d'un autre monde situent en même temps le lieu de la caméra: nous sommes à l'intérieur, et c'est de l'intérieur que le regard des cinéastes fouille la réalité et les mythes de cette région. De même que Barbara Kopple était avec les mineurs grévistes de Harlan County USA, de même Antonio Reis et Margarida Cordeiro sont du côté de ceux qu'ils filment: chaque personnage filmé ne l'a été qu'au bout d'une longue et patiente expérience, qui ne peut être que celle de l'amour. Dans Trás os Montés, on ne trouve pas de pittoresque mais des mythes: les auteurs ne font pas décrire, ils inventent, ils rêvent.
Si la musique donne une idée de l'espace comme le disait Baudelaire, il en va à plus forte raison de même pour le son. De ces premiers sons de la montagne jusqu'au hurlement stridente de la sirène dans les plans de la fin, il semble que ce soit le son qui donne au film sa dimension réaliste tandis que les images tendent constamment à poétiser le réel (lumière chaude du soleil couchant, cristaux de glace au bord des ruisseaux, apparitions des femmes dans les blocs de rochers noirs, volutes blanches de la fumée du train, etc.) ou à dissoudre l'espace dans la durée: long plan de route sur une carriole qui s'enfuit à l'horizon, nombreux panoramiques et en particulier celui de 360º sur les visages des habitants réunis dans la tour du monastère. À se perdre dans l'espace on se perd dans le temps, ou plutôt le temps perd sa durée, il devient extensible à l'infini: pendant que les enfants jouent et roulent sur l'herbe ils rencontrent des femmes d'un autre âge qui les invitent à rester avec elles. Lorsqu'ils retrouvent le village, plusieurs générations se sont écoulées, comme dans la légende contée par Hugo du beau Pécopin et de la belle Beaudour, où la partie de chasse dure cent ans.
Eloignée de tout repère social ou politique tangible, la région du Trás Os Montés n'a pour tout recours que de vivre sur le fond mythologique immuable de ses traditions et de son histoire. C'est le mérite de ce beau film que d'avoir révélé cette permanence de la légende au coeur de cette réalité paysanne: sous l'oeil magique de la caméra, c'est la réalité qui devient mythique, c'est le mythe qui devient sensible.
Philippe Le Guay
Revista Positif, n.º 208/209, secção de A a Z, p. 117-118, de Julho/Agosto de 1978.
Trás Os Montés ne se présente pas comme un documentaire, ni même comme un document sur la réalité sociale et culturelle de cette région de Trás os Montés, Nord-Est du Portugal. Pour cela il eût fallu que cette réalité fût connue d'avance, qu'elle existe a priori avant l'oeuvre d'Antonio Reis et Margarida Cordeiro vient d'avoir fait de la caméra un moyen d'investigation plutôt qu'un objet d'enregistrement.
Le premier plan du film découvre une chaîne de montagnes au cours d'un lent panoramique tandis que la bande sonore réinvente les bruits de la nature, un chant perdu dans la montagne, les mouvements des troupeaux. À la manière de ces cinéastes qui dévoilent toute la thématique de leur oeuvre dès les premières images, au moment où la disponibilité du spectateur est la plus éveillée - mais aussi la moins avertie - cette ouverture pose d'emblée le sujet du film. Les montagnes qui font écran, qui isolent leurs habitants aux confins d'un autre monde situent en même temps le lieu de la caméra: nous sommes à l'intérieur, et c'est de l'intérieur que le regard des cinéastes fouille la réalité et les mythes de cette région. De même que Barbara Kopple était avec les mineurs grévistes de Harlan County USA, de même Antonio Reis et Margarida Cordeiro sont du côté de ceux qu'ils filment: chaque personnage filmé ne l'a été qu'au bout d'une longue et patiente expérience, qui ne peut être que celle de l'amour. Dans Trás os Montés, on ne trouve pas de pittoresque mais des mythes: les auteurs ne font pas décrire, ils inventent, ils rêvent.
Si la musique donne une idée de l'espace comme le disait Baudelaire, il en va à plus forte raison de même pour le son. De ces premiers sons de la montagne jusqu'au hurlement stridente de la sirène dans les plans de la fin, il semble que ce soit le son qui donne au film sa dimension réaliste tandis que les images tendent constamment à poétiser le réel (lumière chaude du soleil couchant, cristaux de glace au bord des ruisseaux, apparitions des femmes dans les blocs de rochers noirs, volutes blanches de la fumée du train, etc.) ou à dissoudre l'espace dans la durée: long plan de route sur une carriole qui s'enfuit à l'horizon, nombreux panoramiques et en particulier celui de 360º sur les visages des habitants réunis dans la tour du monastère. À se perdre dans l'espace on se perd dans le temps, ou plutôt le temps perd sa durée, il devient extensible à l'infini: pendant que les enfants jouent et roulent sur l'herbe ils rencontrent des femmes d'un autre âge qui les invitent à rester avec elles. Lorsqu'ils retrouvent le village, plusieurs générations se sont écoulées, comme dans la légende contée par Hugo du beau Pécopin et de la belle Beaudour, où la partie de chasse dure cent ans.
Eloignée de tout repère social ou politique tangible, la région du Trás Os Montés n'a pour tout recours que de vivre sur le fond mythologique immuable de ses traditions et de son histoire. C'est le mérite de ce beau film que d'avoir révélé cette permanence de la légende au coeur de cette réalité paysanne: sous l'oeil magique de la caméra, c'est la réalité qui devient mythique, c'est le mythe qui devient sensible.
Philippe Le Guay
Revista Positif, n.º 208/209, secção de A a Z, p. 117-118, de Julho/Agosto de 1978.
quinta-feira, maio 07, 2020
225. "TRÁS-OS-MONTES" na "Cinéma"
[Estreia em Paris, 22 de Março de 1978]
Tras-os-montes
"Ce film est pour moi la révélation d'un nouveau langage cinématographique."
Jean Rouch
Pierres et visages inexpugnables. Quand les peuples enfouis et lointains parlent avec les mots du silence aride, leur langage ressemble à la forteresse poussiéreuse d'un mont. Chaque parole est le son multiple d'un secret ancestral. Tras-os-Montes est écrit avec les images des légendes, des litanies qui peuplent les souvenirs d'un passé assoupli par un oubli de mort. La mémoire devient un poème tranquille qui coule d'une source vers le cours long, la fluidité transitoire des images.
L'évocation du Nord-Est portugais, province oubliée par la lenteur fugitive de l'espoir, n'est pas seulement une peinture vigoureuse, une mise au point percutante. Margarida Martins Cordeiro et Antonio Reis ont évité la rhétorique facile du documentaire, de l'étude strictement sociologique pour découvrir la source naissante d'une écriture nouvelle: le poème cinématographique, la poésie en d'autres termes. Jean Rouch a raison quand il parle d'un nouveau langage cinématographique. Tras-os-Montes est écrit avec des images en vers. A la cadence brève de certains plans suit la longueur, l'alexandrin d'un plan-séquence. Il existe une musicalité visuelle qui rime doucement avec le regard. Ainsi le long plan fixe où un bourricot portant un homme trotte lentement vers nous. Le bourricot passe sur une partie ombragée de la route et, à ce moment, le bruit des sabots devient l'unique témoignage de mouvement. Notre regard n'arrive plus en effet à percevoir le déplacement: le bourricot semble trotter sur place. Le mouvement devient un infini imperceptible. Il se crée un vide, une sensation de vertige, une notion de perte d'équilibre. Le regard doit se ré-actualiser pour survivre.
Il existe une attirance subtile mais irrésistible du regard pour la chose vivante qui est vue. L'opposé de la tradition cinématographique, où la chose vue devient vivante grâce à notre regard. Ici, on dirait que l'image est si vitale, si gorgée de vie que notre regard se réduirait à un simple témoin oculaire, justement, de cette présence de vie. Tras-os-Montes dépasse ce stade. Il crée un dialogue en définitive mais un dialogue différent. L'image n'est plus seulement une porteuse de stimuli pour notre regard et ce dernier n'est plus un conduit de sensations. Image et regard ne sont pas trahis, pervertis. Ces deux composantes restent indépendantes et autonomes mais convergent, se traversent sans pour autant s'unir, "s'osmoser" dans un espace unique, une identité appauvrissante.
J'avais parlé, pour Dora et la lanterne magique de Pascal Kané, d'un regard repoussé, d'un cercle vicieux entre le spectateur et la chose vue. Dans Tras-os-montes, ce n'est pas un jeu rituel et visuel qui se produit mais la création d'un infini vacillant où s'engrouffe une poésie sensitive: le regard autonome ressent la vie de l'image. Il existe alors une perte, celui du Moi spectateur, le regard étant celui qui restent. Ainsi dans un long plan-séquence, une fille voit son père s'éloigner sur un cheval. La fille reste off, seule son ombre est visible. L'éloignement, le départ du père, ce vide devient alors beaucoup plus lourd. L'absence de la fille dans l'image correspond à l'absence future du père du lieu physique et vivant devenu image. Puis la fille apparaît dans le lieu vivant (le champ de l'image) et ce long adieu meurt avec la disparition du père de notre regard e du regard de la fille. L'image a donc explicité tout un discours intérieur (ombre de la fille - éloignement du père - apparition de la fille - disparition du père) sans que notre regard en soit concerné, perde son autonomie. Pourtant, une fois encore, ces deux composants convergent: le regard de la fille que nous ne pouvons voir (elle est firmée de dos) est la force motrice du plan et ce regard, cette vie intérieure de l'image, converge avec notre regard.
Tras-os-Montes est aussi un film sur le parcours des absences. Pendant tout le film, les individus cherchent et se cherchent, arrivent ou s'en vont, voient ou imaginent comme si le vide immense de ce pays poussiéreux et abandonné provoquait la quête métaphysique d'une existence, d'une preuve de sens. La prise en charge de lieu, de l'espace par l'individu ne correspond pas à une domination du temps: les gens attendent et entendent le temps passer, le vieux forgeron continue à travailler pour ne pas mourrir, Le peuple de Tras-os-Montes est à la recherche d'une propre identité, d'une raison de vivre. Margarida Martins Cordeiro et Antonio Reis traduisent à la perfection cette recherche. Le scénario reprend non seulement des légendes où l'immortalité, la perte temporelle est un facteur dominant mais aussi des drames humains où la séparation entre les individus est provoquée par la distance (qui est ici conçue comme une notion temporelle). Ainsi les enfants se perdent quelques instants dans la campagne mais quand ils reviennent au village plusieurs années sont passées et plus personne ne les reconnaît. C'est l'oubli de la mort. Condamnés à l'immortalité, ces enfants symbolisent non seulement la persistance de l'abandon, la misère éternelle des régions délaissées para une administration centraliste mais aussi le privilège, le triste avantage d'être l'ultime terre des mythes culturels. Le Nord-Est portugais, tel qu'il est décrit dans Tras-os-Montes, rappelle parfois cette atmosphère du théâtre grec, la racine de toute la culture occidentale. La cité platonicienne dans un oubli de mort. Nous sommes au bord du gouffre et à chaque plan où le vécu devient fort, pesque encombrant, cette sensation de vide se fait sentir insoutenable et insondable. La fin de ce monde matériel survit, difficile, dans l'espace que lui ouvre le monde imaginaire. De là, l'osmose entre légende et drame humain, entre temps réel et temps imaginaire, qui est vivante tout au long du film.
Tras-os-Montes est donc, par la force des choses, situé au bord d'un éternel recommencement, C'est la révolution permanente. A chaque plan nouveau, l'écriture est continuellement remise en question, parce que chaque plan comporte à lui-même une homogénéité, une vie intérieure. Il ne peut y avoir ici accumulation d'images qui s'annulent. L'ellipse semble ici absente bien que Tras-os-Montes soit composé d'une succession de styles entremêlés et de plusieurs linéarités sous-jacentes qui, boucle par boucle, se traversent. C'est ainsi que le film commence avec le récit de deux enfants, les souvenirs d'une mère, puis soudainement ces protagonistes qui semblaient tenir le fil conducteur, disparaissent et sont couverts par d'autres existences, d'autres récits de souvenirs. L'existence est la principale linéarité. Il y a toujours une vague qui couvre l'autre, un nouveau vers qui complète la rime. Cela s'explique. Chaque individu est ici partie intégrante de monde qui l'entoure. Sa solitude est le désert de cette région dépeuplée. La réalité ambiante incombe. L'image ici n'a pas de sens sans elle. La réalité n'est pas réduite à une image de vie mais est elle-même la vie de l'image. Le cinéma cesse d'être la pratique du monde, le réel, à tout instant renouvelée, chaque plan re-pratiquée. C'est pourquoi le off est ici si présent, ressenti. La caméra n'arrive jamais à se situer. Cette démarche peut être schématisée par ce plan-séquence où la caméra filmant dos paysans qui l'encerclent, tourne sur place et essaye d'appréhender l'espace. Soudainement, presque à l'insu de la caméra, des mêmes paysans sont habillés en ouvriers. Le plan n'arrivait pas à dominer la réalité (rurale) filmée que déjà à cette même réalité se superpose une autre (celle ouvrière). La réalité construit ele-même la métaphore, le concret génère son propre abstrait. Le cinéma semble totalement incapable d'assumer sa fonction et la dernière séquence de Tras-os-Montes, où la caméra suit, hésitante, dans l'obscurité, le son d'un train qui s'éloigne, est pareil au pas incertain d'un vieillard aveugle. António Reis e Margarida Martins Cordeiro nous enseignent que le grand cinéma est l'annulation de celui-ci ainsi que l'infini le plus immense et insoutenable est le néant. Tras-os-Montes finit donc par démontrer que si la vie dans le cinéma (miroir-reflet) est une duperie, la notion de cinéma pour la vie (ventre-procréation) est un triste sophisme. Ni miroir, ni ventre, le cinéma et la vie ne peuvent être mis em relation puisqu'ils sont du même corps intrinsèquement. Le cinéma ne peut être vidé de vie parce qu'il est le vide de la vie, il ne peut être privé de réalisme quand il en est la partie cachée.
Joris Ivens a dit "Tras-os-Montes continue de me poursuivre". Belle formule. Le cinéma poursuit les souvenirs comme le néant qui poursuit la vie.
Leonardo de la Fuente
Revista Cinéma, n.º 234, p. 77-78, de Junho de 1978.
Jean Rouch
Pierres et visages inexpugnables. Quand les peuples enfouis et lointains parlent avec les mots du silence aride, leur langage ressemble à la forteresse poussiéreuse d'un mont. Chaque parole est le son multiple d'un secret ancestral. Tras-os-Montes est écrit avec les images des légendes, des litanies qui peuplent les souvenirs d'un passé assoupli par un oubli de mort. La mémoire devient un poème tranquille qui coule d'une source vers le cours long, la fluidité transitoire des images.
L'évocation du Nord-Est portugais, province oubliée par la lenteur fugitive de l'espoir, n'est pas seulement une peinture vigoureuse, une mise au point percutante. Margarida Martins Cordeiro et Antonio Reis ont évité la rhétorique facile du documentaire, de l'étude strictement sociologique pour découvrir la source naissante d'une écriture nouvelle: le poème cinématographique, la poésie en d'autres termes. Jean Rouch a raison quand il parle d'un nouveau langage cinématographique. Tras-os-Montes est écrit avec des images en vers. A la cadence brève de certains plans suit la longueur, l'alexandrin d'un plan-séquence. Il existe une musicalité visuelle qui rime doucement avec le regard. Ainsi le long plan fixe où un bourricot portant un homme trotte lentement vers nous. Le bourricot passe sur une partie ombragée de la route et, à ce moment, le bruit des sabots devient l'unique témoignage de mouvement. Notre regard n'arrive plus en effet à percevoir le déplacement: le bourricot semble trotter sur place. Le mouvement devient un infini imperceptible. Il se crée un vide, une sensation de vertige, une notion de perte d'équilibre. Le regard doit se ré-actualiser pour survivre.
Il existe une attirance subtile mais irrésistible du regard pour la chose vivante qui est vue. L'opposé de la tradition cinématographique, où la chose vue devient vivante grâce à notre regard. Ici, on dirait que l'image est si vitale, si gorgée de vie que notre regard se réduirait à un simple témoin oculaire, justement, de cette présence de vie. Tras-os-Montes dépasse ce stade. Il crée un dialogue en définitive mais un dialogue différent. L'image n'est plus seulement une porteuse de stimuli pour notre regard et ce dernier n'est plus un conduit de sensations. Image et regard ne sont pas trahis, pervertis. Ces deux composantes restent indépendantes et autonomes mais convergent, se traversent sans pour autant s'unir, "s'osmoser" dans un espace unique, une identité appauvrissante.
J'avais parlé, pour Dora et la lanterne magique de Pascal Kané, d'un regard repoussé, d'un cercle vicieux entre le spectateur et la chose vue. Dans Tras-os-montes, ce n'est pas un jeu rituel et visuel qui se produit mais la création d'un infini vacillant où s'engrouffe une poésie sensitive: le regard autonome ressent la vie de l'image. Il existe alors une perte, celui du Moi spectateur, le regard étant celui qui restent. Ainsi dans un long plan-séquence, une fille voit son père s'éloigner sur un cheval. La fille reste off, seule son ombre est visible. L'éloignement, le départ du père, ce vide devient alors beaucoup plus lourd. L'absence de la fille dans l'image correspond à l'absence future du père du lieu physique et vivant devenu image. Puis la fille apparaît dans le lieu vivant (le champ de l'image) et ce long adieu meurt avec la disparition du père de notre regard e du regard de la fille. L'image a donc explicité tout un discours intérieur (ombre de la fille - éloignement du père - apparition de la fille - disparition du père) sans que notre regard en soit concerné, perde son autonomie. Pourtant, une fois encore, ces deux composants convergent: le regard de la fille que nous ne pouvons voir (elle est firmée de dos) est la force motrice du plan et ce regard, cette vie intérieure de l'image, converge avec notre regard.
Tras-os-Montes est aussi un film sur le parcours des absences. Pendant tout le film, les individus cherchent et se cherchent, arrivent ou s'en vont, voient ou imaginent comme si le vide immense de ce pays poussiéreux et abandonné provoquait la quête métaphysique d'une existence, d'une preuve de sens. La prise en charge de lieu, de l'espace par l'individu ne correspond pas à une domination du temps: les gens attendent et entendent le temps passer, le vieux forgeron continue à travailler pour ne pas mourrir, Le peuple de Tras-os-Montes est à la recherche d'une propre identité, d'une raison de vivre. Margarida Martins Cordeiro et Antonio Reis traduisent à la perfection cette recherche. Le scénario reprend non seulement des légendes où l'immortalité, la perte temporelle est un facteur dominant mais aussi des drames humains où la séparation entre les individus est provoquée par la distance (qui est ici conçue comme une notion temporelle). Ainsi les enfants se perdent quelques instants dans la campagne mais quand ils reviennent au village plusieurs années sont passées et plus personne ne les reconnaît. C'est l'oubli de la mort. Condamnés à l'immortalité, ces enfants symbolisent non seulement la persistance de l'abandon, la misère éternelle des régions délaissées para une administration centraliste mais aussi le privilège, le triste avantage d'être l'ultime terre des mythes culturels. Le Nord-Est portugais, tel qu'il est décrit dans Tras-os-Montes, rappelle parfois cette atmosphère du théâtre grec, la racine de toute la culture occidentale. La cité platonicienne dans un oubli de mort. Nous sommes au bord du gouffre et à chaque plan où le vécu devient fort, pesque encombrant, cette sensation de vide se fait sentir insoutenable et insondable. La fin de ce monde matériel survit, difficile, dans l'espace que lui ouvre le monde imaginaire. De là, l'osmose entre légende et drame humain, entre temps réel et temps imaginaire, qui est vivante tout au long du film.
Tras-os-Montes est donc, par la force des choses, situé au bord d'un éternel recommencement, C'est la révolution permanente. A chaque plan nouveau, l'écriture est continuellement remise en question, parce que chaque plan comporte à lui-même une homogénéité, une vie intérieure. Il ne peut y avoir ici accumulation d'images qui s'annulent. L'ellipse semble ici absente bien que Tras-os-Montes soit composé d'une succession de styles entremêlés et de plusieurs linéarités sous-jacentes qui, boucle par boucle, se traversent. C'est ainsi que le film commence avec le récit de deux enfants, les souvenirs d'une mère, puis soudainement ces protagonistes qui semblaient tenir le fil conducteur, disparaissent et sont couverts par d'autres existences, d'autres récits de souvenirs. L'existence est la principale linéarité. Il y a toujours une vague qui couvre l'autre, un nouveau vers qui complète la rime. Cela s'explique. Chaque individu est ici partie intégrante de monde qui l'entoure. Sa solitude est le désert de cette région dépeuplée. La réalité ambiante incombe. L'image ici n'a pas de sens sans elle. La réalité n'est pas réduite à une image de vie mais est elle-même la vie de l'image. Le cinéma cesse d'être la pratique du monde, le réel, à tout instant renouvelée, chaque plan re-pratiquée. C'est pourquoi le off est ici si présent, ressenti. La caméra n'arrive jamais à se situer. Cette démarche peut être schématisée par ce plan-séquence où la caméra filmant dos paysans qui l'encerclent, tourne sur place et essaye d'appréhender l'espace. Soudainement, presque à l'insu de la caméra, des mêmes paysans sont habillés en ouvriers. Le plan n'arrivait pas à dominer la réalité (rurale) filmée que déjà à cette même réalité se superpose une autre (celle ouvrière). La réalité construit ele-même la métaphore, le concret génère son propre abstrait. Le cinéma semble totalement incapable d'assumer sa fonction et la dernière séquence de Tras-os-Montes, où la caméra suit, hésitante, dans l'obscurité, le son d'un train qui s'éloigne, est pareil au pas incertain d'un vieillard aveugle. António Reis e Margarida Martins Cordeiro nous enseignent que le grand cinéma est l'annulation de celui-ci ainsi que l'infini le plus immense et insoutenable est le néant. Tras-os-Montes finit donc par démontrer que si la vie dans le cinéma (miroir-reflet) est une duperie, la notion de cinéma pour la vie (ventre-procréation) est un triste sophisme. Ni miroir, ni ventre, le cinéma et la vie ne peuvent être mis em relation puisqu'ils sont du même corps intrinsèquement. Le cinéma ne peut être vidé de vie parce qu'il est le vide de la vie, il ne peut être privé de réalisme quand il en est la partie cachée.
Joris Ivens a dit "Tras-os-Montes continue de me poursuivre". Belle formule. Le cinéma poursuit les souvenirs comme le néant qui poursuit la vie.
Leonardo de la Fuente
Revista Cinéma, n.º 234, p. 77-78, de Junho de 1978.
quarta-feira, maio 06, 2020
224. "TRÁS-OS-MONTES" na "Isto é cinema"
[Estreia em Paris, 22 de Março de 1978]
Acontecimento
cultural em Paris
TRÁS-OS-MONTES
visto por franceses
Acontecimento
cultural em Paris
TRÁS-OS-MONTES
visto por franceses
No momento em que escrevemos, está em quinta semana de exibição comercial em Paris (no Estúdio Action République) o filme Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Martins Cordeiro, tendo até agora tido grande frequência de público (com duas sessões diárias) e referências entusiásticas da crítica. Alguns ecos desse interesse vieram já a lume na nossa imprensa, mas a sua importância para a cultura portuguesa e o cinema que queremos justifica, nesta revista, referência mais desenvolvida.
O êxito em Paris deste filme motivou, aliás, um convite para uma manifestação cinematográfica de grande relevo nos Estados Unidos - o Seminário Flaherty. Uma delegação deste viu Trás-os-Montes na sala do Action e solicitou a sua participação no seminário, que se realiza em Agosto próximo, sendo igualmente convidados os seus autores. No Seminário Flaherty tomam parte alguns dos mais importantes cineastas de todo o mundo, tendo um dos convites sido dirigido a Jean Rouch - por sinal um dos entusiastas de Trás-os-Montes, que já viu repetidamente e de que falou na "France-Culture", além de uma crítica no Pariscope. Interrogado sobre o convite norte-americano, António Reis considerou que o filme entra por uma via extremamente honrosa nos Estados Unidos.
Em França, Trás-os-Montes está a defender um milhão de emigrantes - é o que pensa Reis, e não é difícil estar de acordo com ele. Impossível, depois de ver estes rostos imersos na distância e contudo tão próximos, tão pessoais (como falar em personagens nesta ficção?), continuar a pensar em termos de "povo anónimo" ou de "massas". Agora trata-se da vida irrepetível de cada um desses seres de que por vezes nos é dito o nome ou ouvimos a fala, ou dos lugares de ressonâncias estranhas que logo se nos tornam familiares - sem no entanto perderem uma "estranheza", uma certa irredutibilidade secreta, que lhes vem de termos transposto o limiar do território poético - o que bem compreendeu Claude-Jean Philippe (artigo em Le Matin, de Paris, 24-3-78), escrevendo sobre "a poesia no cinema" a propósito do filme de Reis e Margarida Cordeiro e de La Chambre Verte, de François Truffaut:
Há um arrepio que não engana. É a emoção da descolagem, da partida. Algo semelhante à passagem de uma fronteira. A paisagem permanece a mesma de um e do outro lado da linha misteriosa, e todavia eis-nos algures, em terra estranha. Os fantasmas vêm ao nosso encontro.
Entrámos já sem o saber em território de poesia. (...) Filmes de amor um e outro, levados a cada momento da sua elaboração e da sua execução pelo fervor, a ternura, a paixão, a paciência. Foram precisos seis anos a François Truffaut e a Jean Gruault para encontrar "a linha dramática ascendente do seu filme". António Reis e Margarida Martins Cordeiro familiarizaram-se muito longamente com as personagens de "Trás-os-Montes". "Nunca filmámos um camponês, uma criança ou um velho - dizem - sem nos termos primeiro tornados seus amigos" (entrevista aos "Cahiers du Cinéma", Maio de 1977). "Só o amor fornece a energia vital que permite passar a fronteira. António Reis e François Truffaut sabem-no, como bons poetas que são ambos. Mas sabem ao mesmo tempo que esse amor não poderia de nenhum modo iludir-se no nebuloso, no indeciso, no vago desejo de evasão a que geralmente é reduzida a aspiração poética."
Em Trás-os-Montes não é pois a evasão que conta, mas a invasão da alma pelos objectos da sua paixão e do seu conhecimento profundo, interpelando a nossa parte de segredo. As críticas e comentários (nenhum desfavorável, até agora) afluem, repetindo-se mesmo. Le Monde, depois de um texto de Jacques Siclier - 25 de Março - fez-lhe já quatro referências na selecção semanal de filmes; Le Matin, duas críticas; duas também em Libération (25 de Março e 4 de Abril), críticas ainda nos jornais France-Soir, Rouge, Politique-Hebdo, L'Humanité, Telerama, Pariscope... e outras deverão ter saído por este dias em Écran e Positif, para além dos Cahiers que se têm interessado muito particularmente pelo filme. E ao mesmo tempo chegam pedidos da província para a exibição (comercial) de Trás-os-Montes: Toulouse, Lyon, Marselha, Lille...
Linguagem poética, cineasta-poeta, documentário poético de combate, realismo poético, são expressões que surgem nas críticas, aliás diversas - para além de algumas linhas de força quase constantes, e que resultam das próprias "evidências" da obra; um crítico diz mesmo que Trás-os-Montes é um poema sobre um mundo, sobre sensibilidades que se lembram, um poema de ontem e de hoje (...). O estilo contemplativo do filme é também certamente testemunho de uma vontade de reflexão, de uma vontade de retomar a respiração, de respirar a plenos pulmões o ar do tempo, o ar das recordações antes do ar do futuro (Albert Cervoni, L'Humanité, 22 de Março); acentua depois como este filme seria diferente se realizado sob o salazarismo e como ele é diferente da produção fascista e diferente do mercantilismo. A discussão apaixonante de Trás-os-Montes (que hoje faz carreira sem precedentes no estrangeiro no que respeita à produção portuguesa - incluindo a "mercantilista") justificaria um ensaio, entre outras razões porque este filme desorganiza saudavelmente as chavetas em que se arrumavam tranquilamente coisas como "ficção" e "documentário", e conceitos como espectáculo, filme narrativo, etc. Essa inovação, que já Rouch lhe apontara, é reconhecida agora, entre outras, por Jean Duflot (Politique-Hebdo, 1-9 de Abril). Mas deve dizer-se que a crítica portuguesa, por vezes distraída, foi em geral capaz, ainda em 1976, de descobrir muitas das pistas do filme e compreendeu a sua importância - que só não dizemos revolucionária porque a palavra tem sido gasta com algumas coisas menos sérias. A repetida referência à poesia a propósito deste filme prova-o; é a gazua que se invoca na falência das chaves comuns, mas é também o signo amoroso de uma revelação maior. Trás-os-Montes é um filme sem fim, sempre a rever, como acontece nos poemas. Com que olhar e quando o reveremos na volta de terras de França para cá dos montes?
Francisco Belard
Revista Isto é cinema, n.º 16, pág. 32-34, 12 de Maio de 1978, 20 esc., semanal, sai às 6.ªs feiras.
AGRADECIMENTO: Ao Professor José Alves Pereira por nos ter enviado este artigo da revista "Isto é cinema". Muito obrigado!
O êxito em Paris deste filme motivou, aliás, um convite para uma manifestação cinematográfica de grande relevo nos Estados Unidos - o Seminário Flaherty. Uma delegação deste viu Trás-os-Montes na sala do Action e solicitou a sua participação no seminário, que se realiza em Agosto próximo, sendo igualmente convidados os seus autores. No Seminário Flaherty tomam parte alguns dos mais importantes cineastas de todo o mundo, tendo um dos convites sido dirigido a Jean Rouch - por sinal um dos entusiastas de Trás-os-Montes, que já viu repetidamente e de que falou na "France-Culture", além de uma crítica no Pariscope. Interrogado sobre o convite norte-americano, António Reis considerou que o filme entra por uma via extremamente honrosa nos Estados Unidos.
Em França, Trás-os-Montes está a defender um milhão de emigrantes - é o que pensa Reis, e não é difícil estar de acordo com ele. Impossível, depois de ver estes rostos imersos na distância e contudo tão próximos, tão pessoais (como falar em personagens nesta ficção?), continuar a pensar em termos de "povo anónimo" ou de "massas". Agora trata-se da vida irrepetível de cada um desses seres de que por vezes nos é dito o nome ou ouvimos a fala, ou dos lugares de ressonâncias estranhas que logo se nos tornam familiares - sem no entanto perderem uma "estranheza", uma certa irredutibilidade secreta, que lhes vem de termos transposto o limiar do território poético - o que bem compreendeu Claude-Jean Philippe (artigo em Le Matin, de Paris, 24-3-78), escrevendo sobre "a poesia no cinema" a propósito do filme de Reis e Margarida Cordeiro e de La Chambre Verte, de François Truffaut:
Há um arrepio que não engana. É a emoção da descolagem, da partida. Algo semelhante à passagem de uma fronteira. A paisagem permanece a mesma de um e do outro lado da linha misteriosa, e todavia eis-nos algures, em terra estranha. Os fantasmas vêm ao nosso encontro.
Entrámos já sem o saber em território de poesia. (...) Filmes de amor um e outro, levados a cada momento da sua elaboração e da sua execução pelo fervor, a ternura, a paixão, a paciência. Foram precisos seis anos a François Truffaut e a Jean Gruault para encontrar "a linha dramática ascendente do seu filme". António Reis e Margarida Martins Cordeiro familiarizaram-se muito longamente com as personagens de "Trás-os-Montes". "Nunca filmámos um camponês, uma criança ou um velho - dizem - sem nos termos primeiro tornados seus amigos" (entrevista aos "Cahiers du Cinéma", Maio de 1977). "Só o amor fornece a energia vital que permite passar a fronteira. António Reis e François Truffaut sabem-no, como bons poetas que são ambos. Mas sabem ao mesmo tempo que esse amor não poderia de nenhum modo iludir-se no nebuloso, no indeciso, no vago desejo de evasão a que geralmente é reduzida a aspiração poética."
Em Trás-os-Montes não é pois a evasão que conta, mas a invasão da alma pelos objectos da sua paixão e do seu conhecimento profundo, interpelando a nossa parte de segredo. As críticas e comentários (nenhum desfavorável, até agora) afluem, repetindo-se mesmo. Le Monde, depois de um texto de Jacques Siclier - 25 de Março - fez-lhe já quatro referências na selecção semanal de filmes; Le Matin, duas críticas; duas também em Libération (25 de Março e 4 de Abril), críticas ainda nos jornais France-Soir, Rouge, Politique-Hebdo, L'Humanité, Telerama, Pariscope... e outras deverão ter saído por este dias em Écran e Positif, para além dos Cahiers que se têm interessado muito particularmente pelo filme. E ao mesmo tempo chegam pedidos da província para a exibição (comercial) de Trás-os-Montes: Toulouse, Lyon, Marselha, Lille...
Linguagem poética, cineasta-poeta, documentário poético de combate, realismo poético, são expressões que surgem nas críticas, aliás diversas - para além de algumas linhas de força quase constantes, e que resultam das próprias "evidências" da obra; um crítico diz mesmo que Trás-os-Montes é um poema sobre um mundo, sobre sensibilidades que se lembram, um poema de ontem e de hoje (...). O estilo contemplativo do filme é também certamente testemunho de uma vontade de reflexão, de uma vontade de retomar a respiração, de respirar a plenos pulmões o ar do tempo, o ar das recordações antes do ar do futuro (Albert Cervoni, L'Humanité, 22 de Março); acentua depois como este filme seria diferente se realizado sob o salazarismo e como ele é diferente da produção fascista e diferente do mercantilismo. A discussão apaixonante de Trás-os-Montes (que hoje faz carreira sem precedentes no estrangeiro no que respeita à produção portuguesa - incluindo a "mercantilista") justificaria um ensaio, entre outras razões porque este filme desorganiza saudavelmente as chavetas em que se arrumavam tranquilamente coisas como "ficção" e "documentário", e conceitos como espectáculo, filme narrativo, etc. Essa inovação, que já Rouch lhe apontara, é reconhecida agora, entre outras, por Jean Duflot (Politique-Hebdo, 1-9 de Abril). Mas deve dizer-se que a crítica portuguesa, por vezes distraída, foi em geral capaz, ainda em 1976, de descobrir muitas das pistas do filme e compreendeu a sua importância - que só não dizemos revolucionária porque a palavra tem sido gasta com algumas coisas menos sérias. A repetida referência à poesia a propósito deste filme prova-o; é a gazua que se invoca na falência das chaves comuns, mas é também o signo amoroso de uma revelação maior. Trás-os-Montes é um filme sem fim, sempre a rever, como acontece nos poemas. Com que olhar e quando o reveremos na volta de terras de França para cá dos montes?
Francisco Belard
Revista Isto é cinema, n.º 16, pág. 32-34, 12 de Maio de 1978, 20 esc., semanal, sai às 6.ªs feiras.
AGRADECIMENTO: Ao Professor José Alves Pereira por nos ter enviado este artigo da revista "Isto é cinema". Muito obrigado!
segunda-feira, maio 04, 2020
223. "TRÁS-OS-MONTES" no "Diário de Notícias"
[Estreia em Paris, 22 de Março de 1978]
Um êxito para o cinema português
O público e a crítica de Paris aplaudem"Trás-os-Montes"
Um êxito para o cinema português
O público e a crítica de Paris aplaudem"Trás-os-Montes"
O filme "Trás-os-Montes", de António Reis e Margarida Cordeiro, encontra-se há mais de um mês em exibição, com lotações esgotadas, no cinema parisiense Action Republique e foi já solicitado para cinemas da província, enquanto a crítica francesa se tem referido em termos elogiosos a esta película portuguesa. Entretanto, "Trás-os-Montes", que participou até à data, em mais de uma dezena de festivais internacionais, tendo sido distinguido com três prémios, o último dos quais o Grande Prémio do Festival de Manheim de 1977, será estreado em breve na Suíça e deverá estar presente em Agosto, nos Estados Unidos, no Seminário Flaherty, encontro em que participam cineastas de renome mundial, expressamente convidados pela entidade organizadora.
Estas, as últimas notícias sobre a carreira além-fronteiras do filme de António Reis e Margarida Cordeiro, que, indubitavelmente, constitui um marco na cinematografia portuguesa. Um filme por certo não suficientemente visto no seu próprio país (embora, a custo, a sua permanência em cartaz na capital se tivesse saldado por um relativo êxito), mas que está, neste momento, a receber em França, sem qualquer favor publicitário premeditado, os favores do público, que tem esgotado a sala do Action Republique, e da crítica, que da Imprensa à Televisão e à Rádio tem realçado a presença de "Trás-os-Montes" na capital francesa. O jornal "Le Monde" tem inserido o filme, desde o início da sua exibição, na habitual secção "Filmes a Ver".
Concluído em 1976, "Trás-os-Montes" foi seleccionado para cerca de quinze certames internacionais, tendo obtido o Prémio Especial do Júri e o Prémio Internacional da Crítica, no Festival de Toulon de 1976, e o Grande Prémio do Festival de Manheim de 1977. No ano passado, foi incluído também no Festival dos Cahiers du Cinema, apresentado em Paris e posteriormente em Barcelona e em Lisboa.
"Um filme admirável"
Do "Le Matine" ao "Libération", passando pelo "L'Humanité" e o "Le Monde", toda a Imprensa parisiense tem referenciado, pela pena dos seus críticos da especialidade, a presença de "Trás-os-Montes", em circuito comercial, naquela sala de Paris. E os artigos publicados, pelo seu destaque e referências, revelam a unanimidade dos aplausos e do fascínio provocado por este filme que alguns não hesitam, como o conhecido crítico Joris Ivens, em classificar como "uma grande obra de arte". Também a televisão e a rádio francesas têm dedicado a "Trás-os-Montes" amplo espaço da sua programação. Jean Rouch, referiu-se, durante o programa "France Culture", ao filme de António Reis e na Televisão, na rubrica de grande audiência "Mosaique", a película portuguesa foi destacada entre os melhores filmes estrangeiros em exibição no momento em Paris, permanecendo o cartaz de "Trás-os-Montes" ao longo de todo o programa. Falando ainda de televisão, num dos programas regulares dedicados aos emigrantes, o mesmo filme foi aí largamente referido.
"As imagens do filme são de uma beleza que confunde sem que, no entanto, a forma estética apague, em algum momento, o significado histórico e social da película", afirma Jacques Siclier no "Le Monde", considerando a obra de António Reis e Margarida Cordeiro como "um documentário poético de combate". O jornal "Libération", insere em dois números muito próximos, duas críticas, uma de Joris Ivens e outra de Jacques Doyon, onde se convida o público francês a "ver e amar este filme admirável", para ambos salientarem a imagem final da película (o comboio conduzindo os emigrantes e o seu silvo agudo), que Doyon considera "provavelmente como uma das mais fortes imagens da história do cinema", e Ivens como "um sinal claro, imediato, bem compreensível", que põe "em alerta o espectador sobre o Portugal acordado, prestes a libertar-se".
Por seu lado "L'Humanité", num longo artigo assinado por Albert Cervoni, considera que ""Trás-os-Montes" é um dos mais belos e melhores filmes produzidos desde que Portugal começou a respirar normalmente, desde a queda do regime fascista", para acrescentar que o filme não se pode entender como um documentário ou uma película sobre uma determinada região do País, mas, pelo contrário "uma obra de pura e completa criação", "esteticamente bela, materialmente e afectivamente sensível", constituindo "um poema sobre um mundo, sobre recordações cheias de sensibilidade, um poema de ontem e de hoje".
Robert Chazal, comenta por sua vez no "France Soir", "Trás-os-Montes" "é um poema envolvente sobre um mundo que morre e onde se sente que esta agonia é o prelúdio de outras em regiões que gostaríamos de salvar".
Jornal Diário de Notícias, pág. 9, 19 de Abril de 1978.
Estas, as últimas notícias sobre a carreira além-fronteiras do filme de António Reis e Margarida Cordeiro, que, indubitavelmente, constitui um marco na cinematografia portuguesa. Um filme por certo não suficientemente visto no seu próprio país (embora, a custo, a sua permanência em cartaz na capital se tivesse saldado por um relativo êxito), mas que está, neste momento, a receber em França, sem qualquer favor publicitário premeditado, os favores do público, que tem esgotado a sala do Action Republique, e da crítica, que da Imprensa à Televisão e à Rádio tem realçado a presença de "Trás-os-Montes" na capital francesa. O jornal "Le Monde" tem inserido o filme, desde o início da sua exibição, na habitual secção "Filmes a Ver".
Concluído em 1976, "Trás-os-Montes" foi seleccionado para cerca de quinze certames internacionais, tendo obtido o Prémio Especial do Júri e o Prémio Internacional da Crítica, no Festival de Toulon de 1976, e o Grande Prémio do Festival de Manheim de 1977. No ano passado, foi incluído também no Festival dos Cahiers du Cinema, apresentado em Paris e posteriormente em Barcelona e em Lisboa.
"Um filme admirável"
Do "Le Matine" ao "Libération", passando pelo "L'Humanité" e o "Le Monde", toda a Imprensa parisiense tem referenciado, pela pena dos seus críticos da especialidade, a presença de "Trás-os-Montes", em circuito comercial, naquela sala de Paris. E os artigos publicados, pelo seu destaque e referências, revelam a unanimidade dos aplausos e do fascínio provocado por este filme que alguns não hesitam, como o conhecido crítico Joris Ivens, em classificar como "uma grande obra de arte". Também a televisão e a rádio francesas têm dedicado a "Trás-os-Montes" amplo espaço da sua programação. Jean Rouch, referiu-se, durante o programa "France Culture", ao filme de António Reis e na Televisão, na rubrica de grande audiência "Mosaique", a película portuguesa foi destacada entre os melhores filmes estrangeiros em exibição no momento em Paris, permanecendo o cartaz de "Trás-os-Montes" ao longo de todo o programa. Falando ainda de televisão, num dos programas regulares dedicados aos emigrantes, o mesmo filme foi aí largamente referido.
"As imagens do filme são de uma beleza que confunde sem que, no entanto, a forma estética apague, em algum momento, o significado histórico e social da película", afirma Jacques Siclier no "Le Monde", considerando a obra de António Reis e Margarida Cordeiro como "um documentário poético de combate". O jornal "Libération", insere em dois números muito próximos, duas críticas, uma de Joris Ivens e outra de Jacques Doyon, onde se convida o público francês a "ver e amar este filme admirável", para ambos salientarem a imagem final da película (o comboio conduzindo os emigrantes e o seu silvo agudo), que Doyon considera "provavelmente como uma das mais fortes imagens da história do cinema", e Ivens como "um sinal claro, imediato, bem compreensível", que põe "em alerta o espectador sobre o Portugal acordado, prestes a libertar-se".
Por seu lado "L'Humanité", num longo artigo assinado por Albert Cervoni, considera que ""Trás-os-Montes" é um dos mais belos e melhores filmes produzidos desde que Portugal começou a respirar normalmente, desde a queda do regime fascista", para acrescentar que o filme não se pode entender como um documentário ou uma película sobre uma determinada região do País, mas, pelo contrário "uma obra de pura e completa criação", "esteticamente bela, materialmente e afectivamente sensível", constituindo "um poema sobre um mundo, sobre recordações cheias de sensibilidade, um poema de ontem e de hoje".
Robert Chazal, comenta por sua vez no "France Soir", "Trás-os-Montes" "é um poema envolvente sobre um mundo que morre e onde se sente que esta agonia é o prelúdio de outras em regiões que gostaríamos de salvar".
Jornal Diário de Notícias, pág. 9, 19 de Abril de 1978.
domingo, maio 03, 2020
222. "TRÁS-OS-MONTES" em "A Capital"
[Estreia em Paris, 22 de Março de 1978]
Desde há quatro semanas
"Trás-os-Montes" esgota lotação num cinema de Paris
Desde há quatro semanas
"Trás-os-Montes" esgota lotação num cinema de Paris
O filme português "Trás-os-Montes", de António Reis e Margarida Cordeiro, acaba de entrar em quarta semana de exibição no cinema parisiense Action Republique e está a ser solicitado para cinemas da província, soube a Anop junto do Instituto Português de Cinema. Segundo informações recolhidas pela Anop, o filme "Trás-os-Montes" tem constituído um êxito pouco habitual para películas portuguesas, quer junto do público, que enche diariamente a sala, quer junto da crítica, sendo de assinalar que o jornal "Le Monde" chegou a incluí-lo, durante duas semanas seguidas, na sua selecção de "Filmes a Ver".
Na sua edição de 25 de Março, aquele jornal inseriu uma crítica ao filme de António Reis e Margarida Cordeiro, assinada por Jacques Siclier, na qual se afirma que "as imagens deste filme são de uma beleza que confunde mas sem que, entretanto, a forma estética elimine em algum momento o significado histórico e social da película", que considera "um documento poético de combate".
Críticas altamente elogiosas
O jornal "L'Humanité", num longo texto da autoria de Albert Cervoni, considera, por sua vez, que "Trás-os-Montes" é "um dos mais belos e melhores filmes produzidos desde que Portugal começou a respirar normalmente desde a queda do regime fascista".
Albert Cervoni, afirma que "Trás-os-Montes" não é um documentário ou um filme de informação sobre determinada região de Portugal. Pelo contrário, sublinha, "é uma obra de pura e completa criação".
"A região em causa não é o assunto, mas sim o quadro arbitrariamente escolhido para uma obra toda ela cheia de imaginação", escreve Cervoni, acrescentando que "Trás-os-Montes" constitui um "poema sobre um mundo, sobre recordações cheias de sensibilidade, um poema de ontem e de hoje".
Por seu turno, o vespertino parisiense "France Soir", em crítica assinada por Robert Chazal, comenta que o filme de António Reis e Margarida Cordeiro é "um poema envolvente sobre um mundo que morre e onde se sente que o prelúdio da agonia tem outras faces que gostaríamos de salvar". De referir ainda que para Joris Ivens, do "Liberation", "Trás-os-Montes" é um filme "a descobrir imediatamente e não mais tarde, como uma grande obra de arte".
Jornal A Capital, pág. 27, Sábado, 15 de Abril de 1978.
Na sua edição de 25 de Março, aquele jornal inseriu uma crítica ao filme de António Reis e Margarida Cordeiro, assinada por Jacques Siclier, na qual se afirma que "as imagens deste filme são de uma beleza que confunde mas sem que, entretanto, a forma estética elimine em algum momento o significado histórico e social da película", que considera "um documento poético de combate".
Críticas altamente elogiosas
O jornal "L'Humanité", num longo texto da autoria de Albert Cervoni, considera, por sua vez, que "Trás-os-Montes" é "um dos mais belos e melhores filmes produzidos desde que Portugal começou a respirar normalmente desde a queda do regime fascista".
Albert Cervoni, afirma que "Trás-os-Montes" não é um documentário ou um filme de informação sobre determinada região de Portugal. Pelo contrário, sublinha, "é uma obra de pura e completa criação".
"A região em causa não é o assunto, mas sim o quadro arbitrariamente escolhido para uma obra toda ela cheia de imaginação", escreve Cervoni, acrescentando que "Trás-os-Montes" constitui um "poema sobre um mundo, sobre recordações cheias de sensibilidade, um poema de ontem e de hoje".
Por seu turno, o vespertino parisiense "France Soir", em crítica assinada por Robert Chazal, comenta que o filme de António Reis e Margarida Cordeiro é "um poema envolvente sobre um mundo que morre e onde se sente que o prelúdio da agonia tem outras faces que gostaríamos de salvar". De referir ainda que para Joris Ivens, do "Liberation", "Trás-os-Montes" é um filme "a descobrir imediatamente e não mais tarde, como uma grande obra de arte".
Jornal A Capital, pág. 27, Sábado, 15 de Abril de 1978.
quinta-feira, outubro 25, 2018
221. "TRÁS-OS-MONTES" no "Expresso"
[Estreia em Paris, 22 de Março de 1978]
Trás-os-Montes: êxito em Paris
Trás-os-Montes: êxito em Paris
Em terceira semana no estúdio "Action-République" "Trás-os-Montes" de António Reis e Margarida M. Cordeiro parece ter encontrado no público e na crítica francesa o reconhecimento unânime da sua importância. Do "Le Monde" ao "L'Humanité" passando pelo "Libération" os recortes que nos chegam e de que transcrevemos pequenos extractos dão bem a ideia de como o desprezo ou a ignorância pelas nossas melhores obras é a outra face do nosso provincianismo.
Eis o que diz, sumariamente, alguma Imprensa de Paris:
. "Para mim, os autores conseguiram criar o sentimento do espaço de "Trás-os-Montes" pela longa duração dos planos. Penso em Dovjenko, grande poeta do écran. (...) É um filme, não para ser descoberto mais tarde como uma grande obra de arte mas a descobrir imediatamente na rue du Temple, cinema "Action"." (Joris Ivens - "Libération").
. "Por uma espécie de mosaico, de fragmentos de história inacabados e um jogo de vai-vem entre o passado longínquo, o passado próximo e o presente, - o que é uma das réussites formais do filme - a expressão em imagens de "Trás-os-Montes" ganha um ar de atemporalidade". (I.A. - "Rouge").
. "As imagens deste filme feito em 16 m/m são duma beleza perturbante sem que nunca o esteticismo venha apagar o significado histórico e social da visão". (Jacques Siclier - "Le Monde").
. "François Truffaut ("La Chambre Verte") e António Reis ("Trás-os-Montes") deixaram-se meticulosamente, apaixonadamente, invadir pelos objectos da sua "reverie". É desta invasão que eles nos falam, mantendo, duma certa maneira, no interior dos seus filmes, a crónica e o diário íntimo. A poesia, então, basta-lhe manter-se em silêncio e esperar-nos onde nós estamos, dos dois lados da fronteira, interpelando a nossa parte de segredo" (Claude-Jean Phillipe - "Le Matin").
. "Este filme tem a curiosa particularidade de ser interpretado pelos habitantes de Trás-os-Montes e de não deixar de ser por isso duma extrema e por vezes fascinante sofisticação. Este é sem dúvida o sinal distintivo de um cinema libertado há pouco dum regime onde o simplismo estético era a consequência de uma política autoritária" (Joshka Shidlow - "Telerama").
. "É pela beleza, a bela rusticidade da sua matéria, que "Trás-os-Montes" conta mais, pelo ritmo ao qual desfilam as nuvens pesadas, pela presença dessas esplêndidas formas gráficas que desenham as águas aprisionadas pelo gelo, pela presença da poeira que levantam, em plena estação quente, as charruas que mordem o solo puxadas pelos burros. (...) Esteticamente belo, materialmente e afectivamente sensível" (Albert Cervoni - "L'Humanité")
Jornal Expresso, Revista, pág. 23-R, 15 de Abril de 1978.
Eis o que diz, sumariamente, alguma Imprensa de Paris:
. "Para mim, os autores conseguiram criar o sentimento do espaço de "Trás-os-Montes" pela longa duração dos planos. Penso em Dovjenko, grande poeta do écran. (...) É um filme, não para ser descoberto mais tarde como uma grande obra de arte mas a descobrir imediatamente na rue du Temple, cinema "Action"." (Joris Ivens - "Libération").
. "Por uma espécie de mosaico, de fragmentos de história inacabados e um jogo de vai-vem entre o passado longínquo, o passado próximo e o presente, - o que é uma das réussites formais do filme - a expressão em imagens de "Trás-os-Montes" ganha um ar de atemporalidade". (I.A. - "Rouge").
. "As imagens deste filme feito em 16 m/m são duma beleza perturbante sem que nunca o esteticismo venha apagar o significado histórico e social da visão". (Jacques Siclier - "Le Monde").
. "François Truffaut ("La Chambre Verte") e António Reis ("Trás-os-Montes") deixaram-se meticulosamente, apaixonadamente, invadir pelos objectos da sua "reverie". É desta invasão que eles nos falam, mantendo, duma certa maneira, no interior dos seus filmes, a crónica e o diário íntimo. A poesia, então, basta-lhe manter-se em silêncio e esperar-nos onde nós estamos, dos dois lados da fronteira, interpelando a nossa parte de segredo" (Claude-Jean Phillipe - "Le Matin").
. "Este filme tem a curiosa particularidade de ser interpretado pelos habitantes de Trás-os-Montes e de não deixar de ser por isso duma extrema e por vezes fascinante sofisticação. Este é sem dúvida o sinal distintivo de um cinema libertado há pouco dum regime onde o simplismo estético era a consequência de uma política autoritária" (Joshka Shidlow - "Telerama").
. "É pela beleza, a bela rusticidade da sua matéria, que "Trás-os-Montes" conta mais, pelo ritmo ao qual desfilam as nuvens pesadas, pela presença dessas esplêndidas formas gráficas que desenham as águas aprisionadas pelo gelo, pela presença da poeira que levantam, em plena estação quente, as charruas que mordem o solo puxadas pelos burros. (...) Esteticamente belo, materialmente e afectivamente sensível" (Albert Cervoni - "L'Humanité")
Jornal Expresso, Revista, pág. 23-R, 15 de Abril de 1978.
terça-feira, setembro 25, 2018
220. HOMENAGEM ESTC - Lições António Reis
O Departamento de Cinema da ESTC decidiu organizar uma homenagem ao cineasta
António Reis, que foi professor da Escola entre 1977 e 1991.
A obra cinematográfica de António Reis tem sido objecto de análise e de diversas retrospectivas, mas nesta homenagem do Departamento de Cinema da ESTC, atendendo a que, durante grande parte da sua vida de cineasta, António Reis foi também professor na Escola de Cinema, a nossa intenção é privilegiar a singularidade do seu magistério, não tanto numa perspectiva de evocação memorialista, mas antes indagando hoje que aspectos, tópicos, dimensões ‘daquilo que António Reis nos legou’ poderão ser propostos à atenção da actual geração de alunos do Departamento de Cinema.
É neste contexto que se irá realizar uma iniciativa a decorrer durante a semana de abertura do ano letivo 2018-19 sob a designação de ‘Lições António Reis’.
Durante quatro tardes, entre os dias 1 e 4 de outubro, haverá a projecção de filmes e lições com o propósito de pensar como os filmes e o ensino de António Reis foram atravessados por questões ‘perscrutadas’ e ‘convividas’ noutros domínios, nomeadamente na estética e na poesia.
Desta homenagem também faz parte a atribuição do nome de António Reis à sala de visionamento do Departamento de Cinema.
A projecção dos filmes em cópias restauradas, em película, no formato de 35 mm, é feita graças à colaboração da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.
PROGRAMA
Lições António Reis
Dia 1 de Outubro, 14.00 - 17.00 h
JAIME (1974), de António Reis
“Causas que seguem os efeitos ou ameixas doiradas com orvalho”, por Maria Filomena Molder
Dia 2 de Outubro, 14.00 - 17.00 h
“Um poeta da imagem”, por Nuno Júdice
TRÁS-OS-MONTES (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro
Dia 3 de Outubro, 14.00 - 15.30 h
“Da atenção ardente”, por Manuel Guerra
Dia 4 de Outubro, 14.00 - 15.30 h
“Uma torrente chamada vida”, por José Bogalheiro
Homenagem
Dia 4 de Outubro, 16.00 h
Sessão solene
Atribuição do nome de António Reis à sala de visionamento
AGRADECIMENTO: Muito obrigado Professor José Bogalheiro, Director do Departamento de Cinema da ESTC, pelo envio desta documentação. Será um momento feliz para a ESTC: António Reis homenageado "no lugar certo"!
A obra cinematográfica de António Reis tem sido objecto de análise e de diversas retrospectivas, mas nesta homenagem do Departamento de Cinema da ESTC, atendendo a que, durante grande parte da sua vida de cineasta, António Reis foi também professor na Escola de Cinema, a nossa intenção é privilegiar a singularidade do seu magistério, não tanto numa perspectiva de evocação memorialista, mas antes indagando hoje que aspectos, tópicos, dimensões ‘daquilo que António Reis nos legou’ poderão ser propostos à atenção da actual geração de alunos do Departamento de Cinema.
É neste contexto que se irá realizar uma iniciativa a decorrer durante a semana de abertura do ano letivo 2018-19 sob a designação de ‘Lições António Reis’.
Durante quatro tardes, entre os dias 1 e 4 de outubro, haverá a projecção de filmes e lições com o propósito de pensar como os filmes e o ensino de António Reis foram atravessados por questões ‘perscrutadas’ e ‘convividas’ noutros domínios, nomeadamente na estética e na poesia.
Desta homenagem também faz parte a atribuição do nome de António Reis à sala de visionamento do Departamento de Cinema.
A projecção dos filmes em cópias restauradas, em película, no formato de 35 mm, é feita graças à colaboração da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.
PROGRAMA
Lições António Reis
Dia 1 de Outubro, 14.00 - 17.00 h
JAIME (1974), de António Reis
“Causas que seguem os efeitos ou ameixas doiradas com orvalho”, por Maria Filomena Molder
Dia 2 de Outubro, 14.00 - 17.00 h
“Um poeta da imagem”, por Nuno Júdice
TRÁS-OS-MONTES (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro
Dia 3 de Outubro, 14.00 - 15.30 h
“Da atenção ardente”, por Manuel Guerra
Dia 4 de Outubro, 14.00 - 15.30 h
“Uma torrente chamada vida”, por José Bogalheiro
Homenagem
Dia 4 de Outubro, 16.00 h
Sessão solene
Atribuição do nome de António Reis à sala de visionamento
AGRADECIMENTO: Muito obrigado Professor José Bogalheiro, Director do Departamento de Cinema da ESTC, pelo envio desta documentação. Será um momento feliz para a ESTC: António Reis homenageado "no lugar certo"!