sábado, janeiro 27, 2007

152. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de João Botelho

3 NOTAS SOBRE TRÁS-OS-MONTES

«Um dia, tendo alcançado o nosso fim, só com orgulho falaremos das longas peregrinações que fomos obrigados a fazer. Mas na realidade não nos tínhamos apercebido da viagem. Se chegámos tão longe foi precisamente porque em todos os lugares nos parecia estarmos em nossa casa».

A ORDEM, O AFASTAMENTO. CONSEQUÊNCIAS

Num encadeamento flutuante de imagens e de sons um «leitor» pode escolher uma parte e ignorar os restantes. Defendendo sobretudo a atribuição de lugar de afirmação às imagens e aos sons que nos importam mas é necessário também tentar perceber os conflitos que se estabelecem pela divisão decidida.

Nota 1. MITOS PESSOAIS E RITOS COLECTIVOS

«Por vezes um poeta encontra a sua justeza em prosa».
Deixando para um lugar à parte (Nota 3) a abertura e o fecho(?), podemos marcar em Trás-os-Montes a existência de dois tempos distintos: no primeiro tempo, alguma coisa insiste continuamente em se dar a ver: o efeito-criança, o espaço privilegiado em demasia, local puro, «esperança» protegida. Tempo lírico, como diz Reis, mas que se alinha nas imagens marcantes dos «meninos de Trás-os-Montes». (Parêntesis espectacular de uma suposta realidade – parêntesis ideal das fábulas da infância e sobretudo dos mitos dos autores do filmes). Neste espaço perfeitamente controlado podemos arriscar uma equação hierarquizada: dominantes – as crianças (Luís mais do que Armando, e ambos mais do que os outros); segundos planos - mulheres e alguns velhos (Ilda mais do que a mãe de Armando e ambas do que os outros); como décor – espaços interiores e a natureza.
Ligações principais – o racord de olhar (ainda que subvertido para um outro espaço, diferente do off do enquadramento, por exemplo: simulações de «flash-backs»).

Um segundo tempo de prosa, «água-forte», como diz Reis. Aqui nenhuma hierarquia, igualização de importâncias, a natureza surge com estatuto de personagem, o racord sem margens, com o máximo de amplitude, estilhaça-se. Figuras, homens e pedras, que se deslocam, transformam e substituem para pôr em jogo a mobilidade e a ressonância da violência. Cada personagem é um exemplo. Os ritos colectivos comandam. Ligação dominantes? – nenhumas. Modernidade sem concessões.
Destes dois tempos, um só consegue libertar todas a razão da sua causa porque se insufla suficiente identificação entre a rudeza das pedras e das gentes, suficiente abandono de regras narrativas (cada vez mais se prova que o povo subjugado não necessita de narrativas, experimentem olhar o seu olhar inequívoco, ou a trágica natureza que o acolhe) suficiente atenção aos elementos que o fustigam, ao desespero que depois fica.

NOTA 2. O OLMO E O RIO

«Apanhei essa ideia no ar e, com receio que me fugisse, fixei-a com as primeiras palavras que me ocorreram...»

Quero marcar duas cenas entre algumas outras possíveis, que se equivalem apesar de se situarem nos tempos distintos: no primeiro tempo a cena do olmo (ver fotografias que ladeiam o texto de J. A. S.); no segundo tempo, a cena do rio (que Serge Daney trata para designar a a-hierarquização do off)
a) em ambas as cenas, o silêncio. Na primeira, após o chamamento inicial, redobrado pela marcação Ilda-mãe, um silêncio de memória. Na segunda, após o ensinamento da pesca, o silêncio do rio.
b) em ambas a rara presença do pai adulto no mesmo enquadramento do (tocando o) filho.
c) em ambas ainda o tema da imaginação em «suspenso», ao contrário do resto do filme: memória do afastamento do pai de Ilda na primeira, e situação do rio instável de fronteira ameaçando com a Espanha (e a Alemanha) por detrás das montanhas.
d) por último a luz e a duração das cenas: fim da tarde, longo plano fixo sobre a estrada de macadame por onde o pai se afasta e Ilda acena; e fim da tarde, longo travelling a rasar as águas.

NOTA 3. ABERTURAS SINGULARES

Cena inaugural: sinais majestosos, travessia sem mistério, segurança espacial, nenhuma suspense, drama da natureza, montanhas-portas, bordos a ultrapassar, ofertas de conhecimento que certificam o espectador, off de som que engendra o fim da travessia e anuncia a saída (entrada no) enquadramento do pequeno pastor mestre das suas ovelhas, veloz. Sinais evidentes de abertura de filme, para lá dos montes. Acentuemos: um décor e um personagem fora do campo, invisível; um som estranho (vários sons agudos, linguagem de pastor) que o introduz. Cena final: a célebre cena do comboio – o que faz ver e ouvir? Um estudo rigoroso das atmosferas oxidantes e redutoras possibilita ver o fumo serpentear no amanhecer ainda negro; e como se a limitação do enquadramento fosse insuficiente, encontramos um prolongamento de duração necessário para que o silvo se transforme em grito, e depois mais do que metáfora, em desespero branco. Mas este signo trágico de fechamento abre de novo, ainda mais trágico: a natureza/fumo grita e o vento fustiga um personagem em silêncio: um novo pastor e um novo rebanho – cabras em vez de ovelhas.
Corte a pique. Trás-os-Montes por fechar. Nenhum descanso.

J. B.

Revista M - Revista de Cinema, págs. 42-44, 4 de Junho de 1977.