157. «JAIME» - Crítica de José Jorge Letria
[Estreia]
VOZ OFF
Encontra-se em exibição numa sala de cinema da capital a notável média-metragem do poeta António Reis intitulada «Jaime».
Tive o privilégio de ver o filme há alguns meses numa sessão privada quando se ignorava ainda se haveria ou não distribuidor interessado na sua divulgação.
Os «Poemas Quotidianos» editados há meia dúzia de anos pela Portugália na colecção «Poetas de Hoje» assinalam o meu primeiro contacto com António Reis, auxiliado pelo esclarecedor prefácio de Eduardo Prado Coelho. Algum tempo mais tarde chegou-me a notícia de que António Reis entrava nos terrenos difíceis da realização cinematográfica, transferindo para a tela o modo peculiar como entende os problemas do quotidiano.
«Jaime» realizado com subsídio do Fundo Português de Cinema é a reflexão desencantada de um poeta sobre as condições em que as pessoas com problemas mentais são tratadas entre nós. A câmara colocada num hospital psiquiátrico de Lisboa conta-nos em termos exemplares a história do grande artista popular que foi Jaime Fernandes e do modo como a sua espantosa, quase torrencial capacidade de criação resistiu a todas as privações e obstáculos que o método de tratamento naquele estabelecimento hospitalar lhe impôs.
Notável em todo o filme é o modo como a sequência angustiante das imagens serve o clima da própria narrativa. A história desconhecida de Jaime Fernandes simboliza a gesta de dezenas de criadores anónimos anulados muitas vezes com o rótulo de «loucos» ou ignorados outras tantas pelo isolamento geográfico e pelo grande «silêncio» que resulta normalmente do analfabetismo e da falta de assistência a vários níveis. Jaime Fernandes internado num hospital psiquiátrico aos trinta e poucos anos deixou nas paredes nuas da sua cela, em pedaços de papel, em caixas de fósforos, em tiras de jornal a marca espantosa da sua capacidade criadora da qual nem os arquivos hospitalares dão a mínima notícia.
Com a mesma fascinante limpidez com que partiu para a escrita de «Poemas Quotidianos» António Reis contou-nos em imagens inesquecíveis a história portuguesa de Jaime Fernandes, usando em fundo o som de Louis Armstrong e de Karlheinz Stockausen, reforço admirável do clima geral do filme, «Jaime» de António Reis feito com a grande humildade que caracteriza o próprio autor é simultaneamente um discurso notável sobre a solidão, sobre a incomunicabilidade e ainda sobre o grande silêncio que por vezes existem na origem da obra de arte.
Com «Jaime» o cinema português chega por uma via surpreendente a um ponto onde não esperávamos vê-lo tão depressa, ou seja à maturidade, à audácia de assumir frontalmente as condições sociais e económicas do país em que existe.
«VOZ OFF» não entra habitualmente em terrenos onde o fôlego por qualquer motivo lhe possa faltar. Com «Jaime» porém abre-se uma excepção. O trabalho exemplar de António Reis justifica-a plenamente.
José Jorge Letria
Jornal República, págs. 7, de 18 de Maio de 1974
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