terça-feira, julho 12, 2005

084. "ROSA DE AREIA" no "Blitz"

[Antestreia na Cinemateca, 7 de Outubro de 1989]

FLORES DO DESERTO

Onde é que se escondem os mais belos e estranhos objectos do Cinema actual? Onde é que é necessário cavar para os descobrir e levar aos lábios, para os saborear longamente, e para, enfim, matar a sede? Onde é que está o sal e a luz, o vento e as sombras, a areia e as vestes, as imagens e os ritmos de que são feitos os sonhos? Onde é o lugar das danças dos corpos e do voltear dos espíritos, das explosões das vísceras e dos bálsamos da alma, dos cansaços dos membros e das memórias presas no olhar? Onde é que deixámos, perdida para sempre, a inocência dos bichos e das plantas e das pedras? E onde é que vogam estes pássaros que, cruéis e amantes, esperam a morte dos homens e com eles confundem os seus gemidos? Onde?
Quem recolhe e guarda sabedorias eternas, conhecimentos revelados pelos deuses antigos e pela mãe das terras, por velhas sacerdotisas e belas feiticeiras, nestes mundos, nestes tempos? Quem poderá saber do passado e do presente, da maldade e das virtudes, da saúde e das maleitas, da mentira e das múltiplas e desvairadas verdades? E quem são estes homens e mulheres, crianças e anciãos, estas gentes, estes povos, que sofrem e que lutam, que amam e se alegram, que são ensinados e ensinam, que observam as modificações das luas e as correrias dos astros, as marés dos desertos e os eclipses dos sóis, que sabem destes segredos e, penitentes e órfãos, deles se apartam? Quem?
Quando foram criadas estas leis, sentenças e condenações, inventados estes comportamentos, rituais, códigos e juízos? Quando foram iniciadas estas práticas que nos obrigam a beber o fel até à última gota, a rastejar por cima de lajes em sangue, a abandonar em exílio a aldeia amada e, no fim, voltar, sempre, ao ponto de partida? Quando é que se começaram a chamar tempestades e bonanças com negros batuques e dourados tambores, com assobios de amante e sopros de amiga, com estas vozes que saem, das peles e das madeiras e dos metais? Quando é que as crianças de todo o mundo aprendem a brincar às escondidas e a contar até vinte, ou trinta, ou quarenta? E quando é que o fogo passou a servir para flagelar os homens, e, na sua ausência, devorar as suas casas e roupas e seus objectos e rastos? Quando?
Porquê estas batalhas que se observam de longe e estas vinganças tribais que as mentes do Ocidente, mentindo, fingem não poder entender? Porquê este violento corpo a corpo entre o velho e o novo, o poderoso e o escravo, o nascido no lugar e o estrangeiro? Porquê estes estigmas que transportamos desde a infância, estes destroços de outras eras, estes medos e horrores primevos, estes sacrifícios de homens e animais? E porquê esta alegria inexplicável e esta festa colectiva, esta vertigem dos sentidos e este ofuscamento da razão, esta perda da terra firme e a fuga, urgente, para outras paragens e outros lugares? Porquê?
Como apreender este tempo que escorre lenta, lentamente, diante destes nossos olhos agora abertos de espanto, agora preenchidos de imagens e de tons e de poemas em ocre e azul? Como perceber estes sons e palavras, estes choros e risos, estes gritos e ais, como perceber estas linguagens que se escapam por entre os dedos e a razão, como areias do deserto arrastadas pelo vendaval, como pétalas de flores vermelhas depositadas sobre um túmulo de mãe, como águas limpas que correm brilhantes e afastam a doença.
Este texto foi baseado em "Yaaba", um filme de Idrissa Ouedraogo ainda em exibição por mais três dias no Fórum Picoas, e "Rosa da Areia", um filme de Margarida Cordeiro e António Reis que passou no sábado passado, às onze da manhã, na Cinemateca Nacional. Não se sabe ainda se terá distribuição comercial no nosso país.

António Pires

Jornal Blitz, pág. 16, 10 de Outubro de 1989