terça-feira, outubro 04, 2005

114. FALECIMENTO - Texto de A. Roma Torres

ESTÉTICA DA INVISIBILIDADE

Os filmes de António Reis e Margarida Cordeiro têm uma relação rara com o espectador. Em primeiro lugar eles não se dão a ver. De uma forma geral os seus filmes não têm acesso à exibição normal. O espectador não os encontrará num programa vulgar. Há como que um ritual que desde logo obriga o espectador a ver o filme em condições de particular disponibilidade. A «aura» dos filmes de António Reis e Margarida Cordeiro tem qualquer coisa de religioso, de sagrado. No Porto, por exemplo, TRÁS-OS-MONTES foi exibido em 1997 numa iniciativa da cooperativa Moviola com o patrocínio da Direcção-Geral de Acção Cultural, e ANA não chegou a ter exibição numa sala comercial, apesar da disponibilidade de um exibidor, tendo tido no entanto uma exibição pública no Congresso «Comunicação – Inquietação» em Janeiro de 1986. Se juntarmos a isso que JAIME é uma média metragem, naturalmente pouco conforme à exibição autónoma no circuito comercial, e ROSA DE AREIA permanece inédito em termos de exibição regular, teremos desde já uma primeira aproximação à estética da invisibilidade no cinema de Reis e Cordeiro.
Se não se conformam às regras vulgares de exibição, os filmes de António Reis e Margarida Cordeiro também procuram uma relação invulgar com o espectador durante a projecção. Pode dizer-se que são filmes feitos para serem vistos mais de uma vez, e frequentemente a cada vez se descobrem novos sinais e novas relações. Argumentar-se-á que isso é verdade para toda a obra cinematográfica, mas talvez no cinema de Reis e Cordeiro essa característica tenha a ver com a própria estrutura dos filmes. Os seus filmes fundam-se numa espécie de negação da evidência. A sua construção funciona por associação; não há praticamente qualquer efeito de redundância. Há como que uma rarefacção dos sinais que em limite tende para o eclipse, para o oculto. De certa maneira o espectador terá que desvendar os filmes com paciência, como para desenrodilhar o peixe da rede na cena do Rio Douro em TRÁS-OS-MONTES, ou como a difícil identificação do comboio pelo fumo branco na escuridão no final ainda de TRÁS-OS-MONTES.
Aliás os filmes de Reis e Cordeiro não inscrevem propriamente uma reflexão sobre os códigos da leitura, ou da visibilidade cinematográfica, embora implicitamente destruam os códigos dominantes.
Por isso é significativo o texto, sempre muito importante no cinema de Reis e Cordeiro, quando nos diz no início de ANA que «naqueles dias a natureza parecia recolhida ao invisível». Ana, aliás, é um filme também sobre a luz, que fala do eclipse como «um silêncio sobre a terra» e faz referência à refracção da luz e à decomposição nas várias cores, associando a ciência (física) a um certo olhar mágico, precisamente através da criança. O jogo entre o visível choro de uma criança e o silêncio da banda sonora constitui um dos momentos expressivamente arrojados de ANA, onde há uma espécie de suspensão em que se toca verdadeiramente uma visibilidade interior. E é ainda através da criança que TRÁS-OS-MONTES entende a magia de pombas ou ovelhas negras e brancas, ou o dicionário e o álbum de fotografias onde a invisibilidade é a porta de entrada numa estranha dimensão do tempo. Dimensão, aliás, que se prolonga em ROSA DE AREIA nas referências a Carl Sagan e a uma «natureza infinita onde se desenham e apagam todas as formas» ou «a maior parte dos cosmos é vazio».
A questão da (in)visibilidade inscrevia-se já de uma forma muito interessante em JAIME pois aí o percurso do personagem é em certo sentido idêntico ao do poeta António Reis. A força interior extraordinária dos desenhos de Jaime, internado no Hospital Miguel Bombarda, nasce duma escrita que progressivamente se torna ilegível (invisível), até o seu grafismo se organizar em imagens, figuras onde precisamente se destacam os olhos, num excesso de visibilidade associado à própria vivência paranóide. Reis passa também da escrita (poesia) à imagem (cinema) e o seu cinema logo desde JAIME ou TRÁS-OS-MONTES só aparentemente é documental ou etnológico, já que parece acreditar pouco na objectividade agressiva das câmaras de uma sociedade tecnológica, preferindo uma estética do pudor, dos sentidos escondidos, da revelação íntima que guarda uma distância paradoxal das terras e das pessoas.
As leis são também de alguma forma realidades invisíveis que Reis e Cordeiro constantemente invocam, ora nos seus aspectos jurídicos que culminam na cena do julgamento do porco em Castelo Branco em 1428 em ROSA DE AREIA, ora nos referentes científicos também presentes no último filme no contraponto entre o poeta (Pedro Tamen) e o cientista (António Manuel Baptista). Mas «as leis que procuramos não são mais que puras imaginações e talvez nem existam» (TRÁS-OS-MONTES), todavia «leis que se mantêm por serem leis e não por serem certas» (ROSA DE AREIA).
A morte de António Reis dá uma dimensão extraordinária ao percurso desenvolvido particularmente em ANA e ROSA DE AREIA. ANA é um filme sobre o ciclo vital, sobre a morte identificada com a mãe, a terra, a água (com relevo para as explorações sobre as formas de navegação da Mesopotâmia associadas aos barcos votivos e ao culto dos mortos). ROSA DE AREIA parte da violência («quem os obriga a combater uns contra os outros?»), da doença, da fome e da morte para um sentido oceânico, cósmico, onde se esbate a fronteira entre a ciência (racional) e a poesia (mistério).

A. Roma Torres

Revista A Grande Ilusão, n.º 13/14, págs. 9-10, Outubro de 1991 a Maio de 1992, Edições Afrontamento, Porto, 1992