sexta-feira, julho 15, 2005

086. "ROSA DE AREIA" - Crítica de Regina Guimarães

ASSISTIR AO FIM DO MUNDO

Aceitemos que os filmes ditem por vezes o modo como sobre eles conseguimos falar. Sem jogo de palavras, ROSA DE AREIA é uma obra espinhosa: até que ponto será possível acercarmo-nos dum objecto concebido para escapar à inteligência e à emoção do espectador, um objecto que só mostra uma face para que batam na outra?
Este é um filme moldado pela angústia de perder a palavra, pelas certezas duma palavra que perdeu o lugar.
Por isso, tudo se passa como se formalmente de além túmulo os seus autores nos pretendessem interpelar, como se vozes, documentos, vestígios fossem registados na hora do sacrifício, como se o fim dum certo mundo já estivesse consumado.
Nesta concepção de cinema, não se medita sobre as armadilhas do pensamento alegórico - elas são utilizadas enquanto tais. Ao renunciarem à moderna condição fragmentária da poesia, António Reis e Margarida Cordeiro retomam o fio gasto duma suposta história exemplar do mundo; esse fio, por definição único, tem servido para prender o «homem» à fraca imagem do condenado. Assim a técnica de «colagem» de textos é um trompe-l'oeil: mero fogo de vista, posto que os homéricos esforços de redenção do caos pelo discurso se conjugam num só sentido. Atentemos ainda no valor atribuído no filme ao vocábulo «homem» e seu parente «humanidade»; ora esse valor afigura-se-nos infixavél, embora a palavra poética sugira que a história dos homens e a história das mulheres só se cruzam nos factos e nos lugares: os homens devassam, as mulheres vigiam. A contradição entre a impressão de desmembramento, no plano estético, e o dogmatismo quase religioso do verbo faz de ROSA DE AREIA um filme de difícil acesso, propriamente mimético do arquétipo de mundo que lá se enuncia: a ilha, materializadora da unidade estrutural do espaço partilhado pelos homens, essa mesma que se furta hoje à fé de alguns (nos quais me incluo).
Em torno do fogo central ou pousadas sobre as aras (pedras sem lei?), as personagens gozam dum espaço natural ameaçado; melhor: nesse espaço virtualmente desaparecido, os fantasmas de personagens ocupam hieraticamente o campo, percorrem-no ainda como disciplinados exércitos em debandada. O próprio guarda-roupa, algo espectral, sublinha a ausência expressiva dos actores, dentro da casa ou pela natureza fora. Mais carnais parecem os elementos (vento, terra, água, luz) nas suas danças do que as figuras nas suas mágoas, fechados numa composição solar e petrificada como o título anuncia.
Noutra leitura, interrogo:
«Homem, tu és duma fragilidade extrema».
Se o desejo do homem é morrer infinitamente em vida, como julgo decorrer das confidências do casal Reis-Cordeiro, a sua brutalidade incontrolável poderá despertar na mulher a força do sacrifício até agora desviada para a submissão ou não fará mais do que tirar a vida (recordemos o plano do espancamento da mulher a dias) a quem vive infinitamente em morte?
«Tu falas contigo mesma».
Como resistir ao encanto deste diálogo tão conjugal que o seu mistério quase desperta ciúme? O espectador será tocado, como eu, por uma asa de memória, e sentirá que ouviu, no silêncio e no escuro, qualquer coisa como uma reminiscência de conversa entre um pai e uma mãe. Nesse aspecto, não sei bem se periférico, ROSA DE AREIA é um filme perfeito.
Poeta de primeira água, António Reis viera à expressão artística pela mão doutra musa mais solitária.
Os «poemas quotidianos» construíam-se principalmente a partir do enfeitiçamento pelas coisas rotineiras, familiares ou banais. Cada poema, balbuciante como a palavra de amor que a boca não desperdiçou, apresenta-se como um modesto tijolo do impossível edifício poético. Porque sujeito e objecto apenas «estão»: a moral não é imanente e o exercício ético um roçar de limites provisórios.
Sobre a magmática matéria urbana, António Reis reinventa a maneira e o dizer em versos que vogam entre a necessidade de espraiamento pelo devaneio e a urgência de contenção que cola aos contornos das coisas. Uma espécie de livro de momentos do citadino sedentário e errante que reivindica para a poesia um lugar nos interstícios do real. Um inquérito indolente sobre o real.
Entre a obra desse António Reis que poderia, nesses tempos maus, ter tomado um café entre dois gritos ou procurado o troco no bolso das calças, e este cinema, que se quer testemunho sereno dum enfeudamento no Cosmos, há um abismo de perguntas.
«A mais simples contemplação do universo comove. Uma parte de nós sabe que lhe pertencemos e que dele vivemos».
A mudança de visão e de ponto de vista vai da lente frágil e vibrátil (poesia-sismómetro) ao ofuscamento visionário (poesia-epitáfio do mundo).
Tudo isto escrevo revendo a mulher que de joelhos se arrasta, percebendo que o holocausto dos pobres é uma figura de estilo no regime mental que nos governa, e tremendo também quando me lembro que o único sentido das leis é criarem o poder que as mantém. Quando algum porco devorar os nossos livros, as nossas fitas, quem pagará as despesas do processo?

Regina Guimarães


Regina Guimarães (Directora)- A Grande Ilusão, n.º 13/14 (Out. 91 a Mai. 92), pág. 15-16, Edições Afrontamento, Porto, 1992