quarta-feira, julho 20, 2005

090. EVOCAÇÃO DO PEDAGOGO

Tinha um boné puído, uma camisa aos quadrados debotada e, estranhamente, estava encostado ao umbral da porta da sala onde iríamos ter Espaço Fílmico. Eu e o meu colega discutíamos Mondrian ou «body-art» ou qualquer coisa assim fatal para a pressa que tínhamos em tudo arrasar, e olhávamos de viés aquele pequeno segmento de alma, «contínuo ou electricista», pensávamos. E de repente dirigiu-se-nos, «venham para dentro, vamos começar a aula, que já estamos atrasados».
Era o Reis.
Em novos julgamos que o conhecimento é assim: descritivo; que como uma espécie de escadaria de Odessa se submete às avalanchas dos títulos. Uma escola de cinema era para nós uma questão de aprendizado técnico, o mais tínhamos nós cá dentro – autores. Foram por isso um desnorte aquelas duas horas de aulas, sentados de costas para a moviola e a falar dos sumérios ou do haiku japonês. Fascinava-nos, mas queríamos resistir: o cinema era o western, o filme negro, alguns dramas, o Fellini ou o Godard em instâncias terminais. Que vinha aquela voz decantada sugerir-nos? Que entre um veio de uma ágata e o modo como respiramos numa corrida de três mil metros existe um raccord.
Só tive dois professores de evocação socrática: o António Reis e o João Miguel Fernandes Jorge. Os dois poetas. Os únicos de quem, pedindo conselho sobre que revista de cinema assinar, poderia esperar acenarem-me, em alternativa, com uma monografia sobre a roupagem na pintura de Leonardo; só eles alimentavam nos alunos uma gana feroz de associação.
O António Reis era o «pânico secreto» dos outros professores, que se dedicavam a territórios precisos.
Da fotografia à montagem, da análise de filmes à história de arte, a sua vocação para estuário abarcava tudo. Um démon que sobrevoava todas as disciplinas, acrescentando-lhes o espírito. Ainda por cima movia-o uma espécie de coacção poética sobre o real que o levava a ler em cada situação quotidiana uma introdução às matérias da arte. Era um poderoso efabulador, capaz de divagar sobre os esplendores e as misérias de uma família a partir de um botão de plástico, imitando madrepérola, que encontrasse no chão, a caminho das aulas. Nunca sabíamos como ia acontecer, as aulas eram um aeroporto sem voo programado.
Narrava, narrava, numa reinvenção contínua da memória. Recorro a um exemplo que furtei a uma entrevista sua à «Capital», por ocasião da saída do Jaime. Diz António Reis sobre a suas primeiras impressões do cinema: «Na festa anual da minha aldeia apareceu uma espécie de vendedor-ambulante com uma pequena barraca, quase do tamanho do Teatro dos Robertos. Espreitava-se para "o que tinha lá dentro" por dois tubos de papelão. Lá dentro, quanto a minha memória recorda, tinha o Pamplinas, o Charlot, o Pate e o Patachão... Não seria como conquistar o "dono do cinema", o mago, mas seria uma frustração imensa não ir mais além. Levei do meu quintal, depois, ameixas doiradas com orvalho, ofereci-lhas timidamente. Aceitou-as. Chamava-se sr. Delfim. Exibida só os filmes para ganhar a vida, mas para mim ele era o "cinema"! Combinámos um encontro na sua casa no Porto. Ah!, mas o Porto era longe para mim. Quando lá fui mais tarde, havia uma pobre senhora num quarto escuro, paralítica, e o sr. Delfim estava preso, por cunhagens de moedas falsas».
Não sei o que haverá neste relato verdadeiro ou falso, é uma coisa que só pertence ao próprio, mas ameixas doiradas com orvalho ou uma senhora (...) paralítica são pormenores de quem sabe que exacto ponto acrescentar ao que conta. De quem sabe as origens da arte.
Lembro-me do julgamento do António Reis sobre o primeiro exercício filmado do meu primeiro ano. Tínhamos sido mandados, à vez, para a Lagoa de Albufeira, com meia hora de película para gastar na adaptação de um conto, simplicíssimo, de Hemingway, das aventuras de Nick Adams. Ao visionar todos os trabalhos, uns doze, o António Reis vidrou num plano feito por um de nós, onde um miúdo acendia a vela dentro de uma tenda, e dispunha-se a aconselhar-nos o lixo com o resto. Falava-nos da luz e da composição à George La Tour e serenamente procurava convencer-nos de que valia mais um único plano com bom enquadramento e melhor tratamento plástico que o raccord ou a articulação forçadamente narrativa entre planos coxos. Foi uma atrapalhação entre os outros professores que precisavam daquele material deficiente para a explanação dos seus conceitos. A dor com que o convenceram.
Sempre lhe pertenceu a radicalidade e a sinestesia do último verso que lhe li, numa revista de cinema: DIZER OLMO COMO QUEM OUVE UM TROVÃO DISTANTE.

António Cabrita

Jornal Expresso, Cartaz, pág 17, 21 de Setembro de 1991