terça-feira, setembro 14, 2004

022. "ANA" - Crítica de Eduardo Prado Coelho

Poder-se-á pensar que Ana repete Trás-os-Montes. Porque algumas das características do cinema de António Reis e Margarida Martins Cordeiro serão facilmente reconhecidas neste segundo filme. E, sobretudo, porque o mesmo isolamento altaneiro desta obra em relação a todo o resto do cinema se volta a verificar. De facto, Trás-os-Montes e Ana constituem uma espécie de território solitário no interior do cinema contemporâneo. E assumem essa condição num gesto enredado de modéstia e de orgulho.
Ana é um filme mais desprotegido do que Trás-os-Montes, e, ao mesmo tempo, mais ambicioso. Em Trás-os-Montes, tínhamos ainda um suporte referencial (uma província portuguesa) que poderia justificar a obra realizada. Com Ana, o filme deixa aparentemente de ter objecto. A metafísica, que anteriormente passava em contrabando, é agora o campo único de exploração. Partindo de um movimento compartilhado para ir à descoberta do homem português, António Reis e Margarida Martins Cordeiro desembocam numa espécie de música que tem por único intuito cantar o homem em geral, a sua relação com a terra, a sua relação com o nascimento e a morte.
Há aqui uma história, mas o espectador, suspenso da força íntima de cada sequência, dificilmente consegue entrever qualquer trama narrativa. Pelo contrário: a única forma de entrar neste filme é olhar cada imagem como se à transparência nela se viesse inscrever a fórmula explicativa do mistério das coisas. A violência deste cinema resulta de uma tal tensão: há um enigma que se tornou tão concreto, tão nítido, tão visível, tão habitável, que a sua decifração não poderá ser adiada. E, no entanto, o filme é todo ele uma interminável mudez. A única sequência em que as personagens falam abundantemente, diessertando sobre as formas de barcos antigos, é, na sua erudição injustificável, no seu discurso sem objectivo, uma outra forma de silêncio.
Um crítico (João Lopes) privilegiou o título para encontrar nele uma chave: de facto, enquanto pessoa, Ana, a mãe Ana, a avó Ana, Ana enquanto saber, Ana enquanto ternura discreta, Ana enquanto dureza assumida, Ana abstracta e misteriosa como o olhar de um animal, constitui o eixo do filme. Mas o que importa acima de tudo é o facto de o significante Ana parecer dizer, na sua concisão, a harmonia inerente a todas as coisas, o equilíbrio entre o princípio e o fim, a vida como travessia entre o mesmo e o mesmo, a sageza imemorial do barco.
Alguns dirão que estamos perante um filme poético. Mas a poesia é aqui ainda uma metáfora. Ana é a poesia – a imagem pesada, maciça, telúrica, da poesia. Mas a poesia é Ana. Esta reversibilidade é que constitui o ponto fundamental. Não há cifra a encontrar. Não há mistério a dissipar. Há apenas a evidência de que tudo está em tudo, de que a poesia está em Ana, de que Ana está na poesia, de que Bach está num pinheiro, de que o mercúrio ou a luz estão em Rilke – e, por conseguinte, qualquer tentativa de explicação, qualquer hermenêutica redutora, qualquer chave dos sonhos, qualquer psicanálise do espaço, são ainda mutilações de uma realidade que apenas se sustenta no canto do seu interminável balanceamento: cada plano deste filme é apenas o eixo provisório dessa reversibilidade sem fim.
Isto poderá contribuir para compreender o modo de filmar de António Reis e Margarida Martins Cordeiro. Eles partem da convicção de que todos os planos de Ana devem repetir a secreta harmonia que constitui o transparente tecido da vida. Daí que os realizadores procurem sempre dar forma a uma dialéctica interior que é feita de jogos de compensações entre as várias formas presentes nas imagens, entre as várias cores, entre os vários sons, entre os vários movimentos, entre as várias zonas de fechamento e os vários lugares de abertura em que cada imagem se articula com as outras imagens. O filme no seu todo é fundamentalmente a expansão desta dialéctica interior. Mas, na medida em que vive sempre nesta interioridade, o filme, continuamente debruçado sobre as mais elementares e óbvias realidades materiais, acaba por se erguer face a nós como uma entidade abstracta, uma visão metafísica, um universo outro, tão puro quanto rarefeito. Há nestas imagens de um quotidiano humilde uma aridez implacável. É daí que sopra o orgulho destas terras distantes. E também a desmesura deste cinema definitivamente absorto em si mesmo.
Ana significa harmonia, mas também cisão, distância insuturável do mesmo ao mesmo. E, por isso, necessidade de transporte para cobrir todas as distâncias. A conversa sobre barcas tem essa função: abrir um fundo metafórico sem contornos precisos – na medida em que, utilizando-se a metáfora do transporte, se deve ter em conta que o transporte é a essência da própria metáfora. Ana é, por um lado, o cosmos. Mas é, ao mesmo tempo (e nesta simultaneidade reside a sua força), o caos. A origem não é apenas harmonia, mas vento demencial. O sono não é apenas repouso, mas queda e confusão. O leite converte-se em sangue (são os dois pólos que sustentam o filme). Estamos, como diria Rilke, perante «o círculo da evolução total» - o que é indescritível: «Mas isto: conter a morte, / a morte toda, ainda antes da vida, tão / docemente contê-la e não ser mau, / isto é indescritível». Ou, se preferirem, isto é Ana.

Eduardo Prado Coelho – Vinte Anos de Cinema português (1962–1982), 1.ª edição, págs. 147-150, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, Lisboa, 1983.