064. "ANA" - Texto de João Lopes a propósito do êxito do filme em Paris
"Ana": um filme urgente
Há uma espécie de maldição interior ao cinema que se faz em Portugal: dir-se-ia que é sempre através de desvios mais ou menos sensíveis que os filmes conquistam (ou perdem) as batalhas que ousaram travar. Daí que cada filme, com maior ou menor mérito na sua própria matéria, pareça estar condenado a ser recebido como «grande acontecimento». Mas os «grandes acontecimentos» também se fabricam e importa, em cada momento, perante cada filme, ser claro, distinguir valores, afirmar paixões.
Vem isto a propósito de «Ana», de António Reis e Margarida Cordeiro, recentemente apresentado no Centro Cultural Português, em Paris, e depois estreado no Républic Cinéma daquela cidade. O mínimo que se pode dizer é que o filme tem sido alvo de uma recepção invulgar. Os testemunhos aí estão e importa não os escamotear. Não se trata, por isso, de querer impor entre nós uma imagem supostamente caucionada por opiniões estrangeiras - disso se tem encarregado, a pretexto de outros filmes, aqueles que preferem a promoção aos filmes. Trata-se, isso sim, de verificar como um filme eminentemente português e, num certo sentido, abertamente regional, pode e sabe abrir portas universais de comunicação.
Isso mesmo recordava Serge Daney num texto admirável - «Au milieu du bout du monde» - publicado no jornal «Libération»: Há muito tempo que um filme não nos recordava com tal evidência que o cinema é, ao mesmo tempo, uma arte do singular e do universal. O que está em jogo é, afinal, o próprio lugar deslizante do espectador e uma certa perturbação da sua quietude. Ainda Daney: Já não são, talvez, muito numerosos os filmes que dão vontade de murmurar, encantados, «Onde estou eu?». Menos por receio de estar perdido, errante, que para reencontrar a emoção daquele que dorme e que, ao acordar, já não sabe de que plano sai, em que plano acaba de repousar, para que mundo acorda. Pela gratidão para com este momento desorientado e pelo prazer de se dizer, formulação arcaica de uma emoção arcaica, «onde estou eu?». Pelo verbo «estar» que vem antes dessa pequena palavra sobrestimada: «eu». Pelo despertar.
Jacques Siclier, em texto publicado no jornal «Le Monde», insiste especialmente no fervor comunicativo de «Ana»: Se não se toca o coração, não se toca a razão. Daí o carácter fundamental original, único, desta travessia do tempo, muitas vezes em planos-sequências, que dão a ver, para lá da realidade social de um país deserdado, as raizes culturais de um canto da Europa onde se cruzaram várias gerações. No limite, é uma dimensão de transcendência que se impõe: Há nesta serena transumância todas as virtudes e todos os mistérios de uma realização cosmogónica, onde nada é mais essencial do que ser a própria matéria, e da vida (André Pierre, em «Les Nouvelles Litteraires»).
Mas é fundamentalmente a opinião escrita de Joris Ivens (a seguir reproduzida) [ver próximo post] que importa destacar. Texto de cineasta sobre o trabalho de outros cineastas, por ele passa, afinal, um sentimento que o próprio cinema de Ivens tão exemplarmente exprime: o da certeza de muitos mundos por descobrir (ou inventar) através dos recursos específicos do cinema.
Dito isto, convém lembrar que «Ana» permanece um filme não exibido em Portugal. Daí que este pequeno memorando contenha uma breve e humilde mensagem que não se pretende apenas implícita: a urgência de dar a ver «Ana» ao público português.
João Lopes
Jornal Diário de Notícias, de 30 de Junho de 1983
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