quarta-feira, janeiro 18, 2006

129. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de António-Pedro Vasconcelos

[Estreia no cinema Satélite, Lisboa - Sexta-feira, 11 de Junho de 1976]

Trás-os-Montes
Satélite 15, 17, 19 e 21.30 h Para todos

À hora em que o leitor nos lê – hoje sábado de manhã bebendo tranquilo a sua bica numa esplanada – já muito provavelmente esta nota deixou de ser um conselho para ser apenas um remorso.
Imperativos do jornalismo (os prazos...) e contingências da bilheteira (as receitas...) parecem conjugar-se para que assim seja: E no entanto passou por Lisboa (e não diremos desta vez que foi o exibidor que não arriscou) um dos mais belos filmes do cinema português, uma das peças-chave da nossa cultura, um dos raros testemunhos que o 25 de Abril deu à luz.
«Trás-os-Montes» de António Reis e Margarida Martins Cordeiro dir-se-ia que é o trabalho de três anos se não fosse, muito mais do que isso, as idades de ambos multiplicadas ou, o que é mais correcto ainda, o trabalho sem idade de uma província remota – Trás-os-Montes – onde se perdeu a memória das dinastias, o que significa, por uma inversão em que o filme é fértil e que lhes dá o último sentido, que dos negócios do reino desapareceu a memória dessa «província».
Que o melhor cinema é a prosa dos poetas, era coisa que sabíamos cada vez que víamos um filme de Murnau ou de Nicholas Ray, de Renoir ou de Rossellini, de Rouch ou de Godard. Hoje, com «Trás-os-Montes» e depois de «Brandos Costumes» ou «Benilde» (atenção leitor do Porto, não perca!), passe o escândalo ou o desdém com que acolham o que dizemos (ria quem pode!) o cinema português começa a ser dos mais interessantes do mundo. Como se faz que «las gentes de la ciudade» se não dêem conta disso é coisa que só prova o que o filme por dignidade, não diz abertamente: como somos provincianos.
Quando em dialecto mirandês ouvimos um texto de Kafka sobre o rosto mudo e majestoso de um transmontano, falar-nos de uma terra que fica tão distante da fronteira como da capital, percebemos (se estivermos na sala para isso) que, por um desses fenómenos que faz do cinema a mais exaltante das artes, o discurso subitamente se inverte e, como num espelho, o som off devolve à imagem, por uma infinita e complexa dialéctica a que os antigos chamavam alquimia e a que Godard chamou montagem, uma carga de que ela julga desapossar-se. Aquele homem sentado, o olhar fixo sobre o horizonte, é um rei destronado; Trás-os-Montes é a capital usurpada e as leis verdadeiras sabe-as ele e sabem-nas as gentes, de uma memória imorredoira: são as que regem o movimento dos astros, dos cursos dos rios, as artes ancestrais da sobrevivência, os rituais infalíveis do sonho, os jogos das crianças, a arquitectura da paisagem, as tragédias quotidianas. De repente percebemos que foi a «capital» de que nos fala o texto de Kafka por voz interposta que perverteu com outros códigos essas leis originais que regiam as relações do homem com o mundo.
Não interessa acusar o público de ser boçal, diletante ou distraído, nem de nos consolarmos com as ideias da obra maldita, tirando dividendos futuros destas duas horas de projecção para os «happy few».
O cinema é decididamente vítima da sua popularidade, do seu circo. A modernidade em cinema não vai porém nessa direcção e a inteligência do filme de A. Reis e Margarida Cordeiro vai-se tornando evidente à medida que o filme se aproxima do fim. Tudo então se liga, as rimas completam-se, a montagem (dois anos de trabalho) revela o seu jogo fascinante: trata-se de justapor elementos visuais e sonoros e de separar outros que a memória sensível do espectador é chamada ao longo da fita a reconstruir. Então «Trás-os-Montes» - filme de etnólogo? filme de poeta? documentário ou ficção – aparece como aquilo que é: não seguramente a excursão turística a que nos convidam todos os documentários, mas uma viagem, como no «comboio» de Delvaux, como em Carrol, como Kafka, a um país onde a lógica parece inverter-se, para melhor nos revelar, pelo rigor dos sonhos, o fantático da realidade.

Como temíamos "Nordeste" saiu, ontem do cartaz. Para a semana procuraremos através de diversos depoimentos aprofundar o porquê desta meteórica passagem. Chamaremos entretanto, a atenção para o filme que o vai substituir: "Aquela Loira" de Jacques Bécker porventura o melhor filme deste autor. A não perder.

n/assinado

Jornal Expresso, Revista, pág. 23, de 19 de Junho de 1976 (secção "Vá expressamente...", coordenada por Helena Vaz da Silva)