104. FALECIMENTO - Texto de Rodrigues da Silva
A morte de António Reis
Um adeus português
Inesperadamente, na terça-feira, morreu-nos um grande cineasta: António Reis. A dolorosa estupefacção permite mesmo assim dizer que ninguém como ele sabia evocar o espírito das coisas, o espírito dos lugares. Deste país. O nosso.
«O Trás-os-Montes do Reis já só existia na cabeça dele» - dizia alguém, há tempos. Seria verdade, se tivesse dito que o cinema de António Reis no coração lhe nascia, do olhar lhe brotava. Assim era. Por isso os seus filmes transfiguraram o real, dele partindo embora. O que deles fica não é, pois, a imagem fiel da realidade, mas a captação de algo que lhe é interior – «o espírito», apetece dizer. O espírito de uma realidade histórica e etnograficamente em vias de total desaparecimento, que nos filmes de António Reis se salvaguarda como o mais fiel, o mais poético, o mais autêntico dos patrimónios.
Se me é permitida uma evocação pessoal, direi que um dia, há anos, passava em Paris, no Action République, a primeira longa-metragem de António Reis: «Trás-os-Montes», justamente. Eu vira já o filme em Lisboa e amava-o. Quis revê-lo e deu-se o inesperado: quando, às tantas, a câmara, parada – totalmente parada, como que a querer suster o efémero de um instante – quando essa câmara fixa a noite transmontana, banhada por uma luz quase irreal, e se ouve, muito ao longe, o apitar do comboio, senti Portugal por inteiro, como nunca o cinema mo fizera sentir.
O comboio não se vê, apenas se ouve, como se fora a sua voz, e é ela que se transforma na própria câmara em «travelling», um «travelling» interminável. E, ouvindo-a – ouvindo essa tão solitária voz – compreendi que um certo Portugal mais e melhor do que ninguém Reis o conseguira captar. Como se, afinal, a realidade só de longe se possa estender. Só perdida se possa amar. Amar em nostalgia.
O universo cinematográfico de António Reis revela isto mesmo: não é a realidade, é a sua evocação. Ou antes, a evocação do espírito dela, feita por um poeta do olhar que, nostálgico, vê – ama – o real desaparecido.
O apito do combóio em «Trás–os–Montes» só tem correspondência no que o cinema português de mais belo nos tem dado com o longo «travelling», de «Ana», quando Ana, a personagem, do filme, caminha pelos campos sem fim, ouvindo–se em fundo o «Magnificat» de Bach.
Mais uma vez não é, obviamente, o real, nem tinha que ser, mas se isto se diz é para desfazer equívocos. Equívocos de que tem sido vítima o cinema de António Reis. Fora ele um outro cinema e suportar–se–ia a ficção, porque, sabe–se, a arte não tem que imitar a vida. O cinema de Reis, porém, é, num certo sentido, quase documental e aí as «infidelidades» ao realismo são imperdoáveis.
Ora é justamente neste ponto que importa realçar a importância excepcional do cinema de António Reis: é que o seu «documentalismo» (um documentalismo ficcionado e duplamente ficcionado, porque poético) capta realmente o real – não o visível, mas o espírito dele. Arrisco: a alma.
Assim em todos os três filmes de fundo. E se «Rosa de Areia» é já quase a abstracção – belíssima, sublime abstracção – não o será por acaso. É que, cada vez mais, o que nos resta de uma cultura, o que nos sobra da espiritualidade de um povo, de tudo isso que o cinema de António Reis tornou imortal – cada vez mais o que nos chega já o é só por uma memória. Uma memória tão frágil quanto indelével.
Um poeta se diz de António Reis. E é-o. É-o pelos seus filmes, foi-o pelos seus «Poemas Quotidianos», a última edição dos quais (na Portugália) data de 1967. O poeta que pela escrita se exprimira contém já em gérmen o poeta que pelo olhar haveria de consagrar-se.
Mais uma vez é uma poesia do real e do real quotidiano. Mas uma vez mais, também, essa realidade surge transmutada numa evocação que o espírito das coisas, o espírito dos lugares celebra. E o dos corpos ou a saudade deles: «Já não sei / onde / começa e acaba / a tua face» - escreve Reis poeta, com a mesma suave nostalgia com que muito mais tarde haveria de filmar essa outra face, a de um país – um certo país que se fora, por entre os dedos se nos escapara e a ele também. «Já não sei / onde são dedos / ou gestos / as minhas mãos» – escreve Reis poeta da escrita. Se o realço, é porque o cinema de Reis – tão irreal, tão abstracto – era, apesar disso ou por isso mesmo, um cinema, antes de mais, profundamente físico, profundamente sensorial.
Como se vê-lo – vê-lo na sua irrealidade – exigisse uma concentração dos nossos sentidos todos.
Disse do cinema de António Reis e, no entanto, não é possível falar desse cinema sem associar ao nome de Reis o de sua mulher, a psiquiatra Margarida Cordeiro, co-autora praticamente da obra toda. Em «Jaime» surge já como assistente para o som e a montagem. Depois, assina com Reis conjuntamente a realização das três longas-metragens. Apesar disto, foi Reis sempre o cineasta, pelo menos para aqueles que, como eu, dele se tornaram amigos por um conhecimento no real.
Sabia-se que Margarida existia, viamo-la, falavamos com ela, mas a uma certa distância. Com Reis - com o querido António, agora falecido, tão jovem nos seus 64 anos - com ele a gente vivia.
Assim, em Julho ainda, na Cinemateca, quando ele me disse dos sonhos do seu próximo filme, como me recordou como escrevera os diálogos de «Mudar de Vida», de Paulo Rocha. Assim, há uma semana ainda, com João Botelho, seu vizinho e amigo que fizera de Reis actor em «Um Adeus Português». «Nunca o vi tão bem, tão sereno e tão feliz» - confessaria Botelho, desfeito, no dia do funeral.
Fora uma morte absurda. Em escassos dias, Reis morria, em casa (!), vitimado por uma gripe (!). Não se acredita, mas foi o que aconteceu, deixando-nos estupefactos de dor e impotentes, deixando o cinema português (passe o lugar comum) mais pobre, muito mais pobre. É que se há coisas que defina um autor - e Reis era-o, indubitavelmente - é a impossibilidade de ter a sua obra continuidade. A dele não terá continuidade, nem epígonos.
Fica assim – quatro filmes apenas – tal como Reis se fixou no último poema do seu livro: «Bate coração / no peito que te guarda / lâmpada suspensa»...
Rodrigues da Silva
Jornal O Jornal, pág. 31, 13 de Setembro de 1991
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