sexta-feira, setembro 30, 2005

112. FALECIMENTO - Texto de Carlos M. Ferreira

UMA POÉTICA DO ESPAÇO E DA PALAVRA

Para quem foi poeta antes de cineasta, a poética do cinema não só terá sido coisa estranha, como terá sido necessária. Não uma poética feita de rimas formais apenas, de repetições rimadas, mas uma poética como tratamento intensivo do espaço e da palavra.
António Reis é parte integrante da cultura portuguesa da segunda metade do século e, a esse título, tudo aquilo que fez, escreveu ou filmou, como a sua própria vida, está imbuído do seu pensamento, do seu ser emocional e intelectual, da sua existência como da sua consciência, da sua afectividade como do seu conhecimento.
Num tempo de indecisões cinematográficas, de repetição experimental de percursos estéticos, de aflitiva escassez de veros valores no cinema português, ele, com Margarida Cordeiro, fez o cinema que a mais ninguém passaria pela cabeça fazer. E, no entanto, os seus filmes vão ao encontro dos grandes autores de uma poética cinematográfica do homem e da natureza, como Alexandr Dovjenko, o mais puro e despojado de todos.
JAIME é um breve poema sobre um pintor marginalizado e desconhecido, um filme sempre mantido no limiar do insustentável, percorrido pela solidão dos desterrados que, antes de o serem, já eram discriminados pela forma de vida que eram forçados a levar. É um poema sobre as manifestas a mas ignoradas agruras da vida que levam a que seja nas circunstâncias mais insólitas que o homem encontra a sua voz interior, a paz de espírito que lhe permite escutá-la. Filme de uma delicadeza visual e cromática espantosa, JAIME prolonga a inspiração poética de António Reis e anuncia a sua chegada ao cinema.
Em TRÁS-OS-MONTES aquilo que fora fechado, circunscrito no espaço, encarcerada procura do infinito em si próprio, abre-se para o exterior. A memória e o imaginário de um homem transforma-se na memória e no imaginário colectivos de uma região esquecida, depauperada, e a visita a um espaço interior transforma-se em viagem de reconhecimento aos diversos tempos e às diversas actividades dessa mesma região. Aí o maravilhoso encontra a tradição e esta aquele, a actualidade fere pela distância a que continua a forçar os indivíduos, as famílias, a comunidade. A uma ideia de continuidade vem juntar-se uma outra, a da fatalidade da separação.
A poética volta a ser da palavra mas, mais extensivamente e com forte apoio no tempo, é também a do espaço físico: o espaço da natureza em que se inscrevem as figuras humanas, como que intemporais de tão violentamente actuais.
O tratamento do tempo sofre uma precisa interpretação poética, que assume foros de decantação da imagem, de depuração dos seres, das palavras, da paisagem. Cada plano, cada movimento de câmara tem que ter aquela duração precisa, e não outra, para que o filme em nós persista, com as suas imagens obsidiantes.
ANA é um decisivo passo em frente, com a ligação de tempos cronológicos de forma mais estreita, com o espaço mais cerradamente definido em função dos personagens, com os seres mais angustiadamente presos das noções de destino e de predestinação. Como se enunciado no feminino, este é mais deliberadamente o filme da terra-mãe, da matriz da vida, da fonte do conhecimento como do mistério, da tentativa de chegar a compreender e a explicar ciente de que se fica sempre inexoravelmente aquém.
Há alguma coisa de fluido, de fugidio em ANA que o aproxima dessas grandes visões quase místicas da natureza em que se confundem espaços e tempos, em que se fundem gerações. Mas este é também o filme da evidência do corpo, em que Reis e Margarida Cordeiro se confessam estarrecidamente solitários num mundo sulcado por sinais dificilmente reconhecíveis de tão evidentes que são. Ninguém parece reparar no que eles aí anotam porque todos ou o sabem, ou o souberam e já esqueceram. A evidência é a da natureza, que tanto pode chocar como deixar indiferente quem dela julga viver alheado ou prefere fazer de conta que a ignora.
ROSA DE AREIA faz aquilo que não devia fazer, isto é, coroa antes de tempo a obra dos dois autores num alargamento cosmogónico de visão do mundo e consuma uma viagem pelo seio da natureza de que participamos como se fosse uma viagem interior, a de JAIME, por exemplo.
Não sei dizer mais do que a enorme pena que me causa esta obra tão apaixonadamente partilhada a dois ter sido interrompida pela morte de um dos autores. Dói-me, em qualquer caso, mais a morte de António Reis do que esse outro motivo de lamento que decorre de saber que filmes projectados ficaram pelo caminho, irremediavelmente.
Com cada cineasta que morre, morre um pouco do cinema. Com António Reis morreu a tensão poética entre o ser e o mundo, entre o universo físico e o universo, paradoxalmente inominável, da palavra.
Ficam-nos os filmes que fez com Margarida Cordeiro e a saudade dele. Fica-nos a obra insubstituível de um homem de grande sensibilidade que soube partilhadamente transmitir, como que em surdina, toda a pujança da natureza e toda a vitalidade, mesmo se precária, do humano, ao mesmo tempo que a angústia do homem por dificilomente subsistir a si mesmo e por se compreender uma pequena parte do universo de que participa, que procura decifrar e em cujo regaço acaba por encontrar apaziguamento final, depois de escassamente o poder ter visto reflectido em si mesmo.
O António morreu. Carinho para a Margarida.

Carlos Melo Ferreira

Revista A Grande Ilusão, n.º 13/14, págs. 11-12, Outubro de 1991 a Maio de 1992, Edições Afrontamento, Porto, 1992