quinta-feira, setembro 22, 2005

107. FALECIMENTO - Texto de Jorge Listopad

«Quando parto fico»

"Sobretudo poeta.
Como esse pequeno homem de boné, imagem de um operário anónimo na rua da cidade que não era sua, na mão o saco das compras com os mantimentos apenas necessários, a cara chupada, mas os olhos, olhos brilhantes alimentados de todas as meteorologias, pois, como esse «fora de jogo», levantava o mundo para ser visto, para nosso conhecimento.
Poeta sobretudo.
Poeta em tudo: de poesia escrita (pouco se sabe, hoje, até entre os poetas), poeta de cinema, em múltiplas funções, poeta da sua resistência (Pide, no Porto), libertado, vítima da «baixa calúnia» de que fala Dostoievski; poeta do comportamento.
O que pouco se sabe, hoje, os versos de António Reis. Os Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos, nos princípios dos anos sessenta, de mapa antidescritivo, mas factológico, sem retórica de persuasão («...enquanto estudo/ouço-te na cozinha...»), lembrando vagamente o longínquo Jessenin ao voltar de Moscovo à aldeia («Com que mão/a ferro/passas a minha roupa//viagens/sem erro//Qual o sonho/amor/no barco de prata//Acalma o coração/só batem à porta»); versos de observação naturalmente antropológicos, puros, de pureza naïf, ninguém se lembrou de os pôr em música...

Dois soldados
passam
de mãos dadas

como amantes

Não tardará
a ronda
a procurá-los

como cães

Soldados
de mãos dadas
têm nome

Não chegarão a ver as montras
e o rio
os dois soldados

e a sentar-se
num banco
de jardim

A ronda
não tardará
a alcançá-los


Canção de poucas palavras, poemas exactos, por detrás desvendando-se o mundo bachelardiano, dos centros vitais, da água, do fogo, dos cantos de casa. Aliás, Bachelard leu os seus poemas, sim, em português, numa das manhãs de Paris.
Embora a sua criação poética só raramente se encontre fora das bibliotecas dos amigos, à excepção, talvez de edição, mais recente, creio com o prefácio de Eduardo Prado Coelho (aquele que não me devolveu o livro, já não o devolve) publico o poema-manuscrito, certamente ainda menos conhecido, escrito em 1962, em momentos muito particulares, suponho, nunca impresso.

Mudamos esta noite

E como tu
eu penso no fogão a lenha
e nos colchões

onde levar as plantas

e como disfarçar os móveis velhos

Mudamos esta noite
e não sabíamos que os mortos
ainda aqui viviam

e que os filhos dormem sempre
nos quartos onde nascem

Vai descendo tu

Eu só quero ouvir os meus passos
nas salas vazias


«Eu não voo, ando...» Adeus, anjo pedestre, anjo autodidacta".


Jorge Listopad

Jornal JL, pág. 6, 17 de Setembro de 1991