087. UM OLHAR LIMPO
"Rosa de Areia" na TV 2
Os filmes de António Reis e Margarida Cordeiro foram levados para uma fronteira tão distante de todo o cinema conhecido que, apesar da sua mais imediata simplicidade, se tornaram invisíveis ao público. É esta amarga ironia que paira sobre um trabalho que, num mundo sem leis, seria acessível em toda a sua inteireza. Citando o crítico francês, que por sua vez citou Mizoguchi, para esta ética cinematográfica, "há que lavar os olhos entre cada plano".
E no princípio era "Jaime" (1976), o retrato de uma personagem esquizofrénica que viveu 31 anos no hospital Miguel Bombarda que lá morreu "quase cem vezes". Era o tempo, como disse João César Monteiro em conversa com António Reis, "da evocação de uma unidade perdida".
Ou a história de um camponês – um beirão que nasceu junto ao Zêzere – cujo sentido se perdeu. Quando tinha um delírio, "pegava numa picareta e começava a picar no cimento do hospital, para descobrir a mina de ouro".
Depois, em "Trás-os-Montes" (1976), foi o tempo de invocar a terra de "druidas", antes que se perdessem "valores de imaginação, valores poéticos, lúdicos, arquitectónicos, de fauna e de flora" do Nordeste português. Era então a terra-mãe, a efabulação e a memória ainda viva dos lugares da infância, que os mais velhos abandonaram. António Reis e Margarida Cordeiro poderiam ter partido em busca dos pais, dos emigrantes. Mas ficaram. E mais profundamente ainda mergulharam no coração materno transmontano. Surgiu "Ana", em 1982, e a transmissão entre as gerações de uma sabedoria que encontra na idade os "sedimentos da geologia".
Cada vez mais árido, o cinema de Reis-Cordeiro encontrou a harmonia no ciclo do nascimento e da morte. Em "Rosa de Areia", já não existe um território delimitado. Habita-se a "natureza infinita onde se desenham e apagam todas as formas". E se "a maior parte do cosmos é vazio", acede-se à palavra, ao diálogo entre a poesia e a ciência, para que todos os discursos sirvam a continuidade do mundo. Como afirmou António Reis, muito antes do seu último filme, ainda existe "o respeito pela pedra que se está a esboroar, mas se temos o sentido da pedra, é porque lhe demos muita cabeçada".
Rui Catalão
ROSA DE AREIA
Seg., 30, TV2, às 23h 10min
Jornal Público, de 28 de Janeiro de 1995
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