sábado, outubro 30, 2004

048. "ANA" - Crítica de Miguel Esteves Cardoso

MAPA DE PORTUGAL: ANA

Era «Ana», o filme de António Reis e Margarida Cordeiro. Filme feito com e para o coração, como se o coração subisse aos olhos para se encher, e perdesse uma batida com o que via, «Ana» tem, como a palavra Mãe, três letras apenas, e é igualmente grande. São coisas pequenas («Ana», «Mãe», «Portugal») que, tal o interior de um búzio sabe trazer o canto imenso do mar, explodem lentamente, e perpetuamente, com a grandeza que contêm.
«Ana» é muito maior do que a claridade quase insuportável da sua beleza – imagens que vão para além do sonho – e, ao mesmo tempo, muito mais pequenino. É mais pequenino (mas não pequeno, adjectivo puramente espacial) por se ficar, afinal, por sentimentos puros e comuns (a minha terra, a minha mãe, a minha casa, a minha infância, o meu país) que, de tão brilhantemente mostrados, não necessitam das useiras amplificações dramáticas. «Ana» é o que está ali, e é essa a comovente simplicidade do filme.
Podia dizer-se «família», «Trás-os-Montes», «morte da Avó-Mãe», mas perder-se-ia o fino enredo do sangue nos lugares antigos e familiares, e reduzir-se-ia «Ana» a uma história, quando «Ana», fora todas as aproximações que se fizeram da expressão, é pouco menos do que a própria alma portuguesa a bater em luz e sombra no lençol já um pouco abajoujado, mas branco ainda, de Portugal.
Nem se fale em poesia, senão do que tem de poético o acto de pacientemente ter procurado apanhar uma essência, o trabalho de riscar a superfície e desbastar e escanhoar uma matéria bruta até revelar o seu segredo, que não é segredo nenhum, porque o somos e pisamos sempre – portugueses, e Portugal.
Tal como «A Ilha dos Amores» (1), «Ana» é um dos pouquíssimos, mas grandíssimos grandes momentos do Festival (2). A diferença entre eles é que «Ana» é, simplesmente, perfeito. Nada mais há a dizer ou fazer depois dele, senão tentar, por outras mãos e outras artes, voltar a ele. E o Cinema Português bem pior podia andar do que se andasse eternamente em volta dele, tentando entrar onde ele entrou, e tentando dar a ver o que ele viu.

[Notas: (1) Filme de Paulo Rocha; (2)11.º Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, 9-19 de Setembro de 1982]

Jornal O Sete, 22 de Setembro de 1982