126. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Carlos Porto
[Antestreia em Bragança (1 de Maio de 1976) e em Miranda do Douro (2 de Maio)]
Depoimento sobre o filme "Trás-os-Montes"
Roteiro de uma dupla memória – a do real e a do fantástico; retrato de um duplo tempo e de um duplo espaço – o tempo histórico e o tempo poético; o espaço interior e o espaço aberto – «Trás-os-Montes» é uma fusão entre essas forças de atracção e de retracção, e é nessa descoberta da realidade entre o concreto e a fascinação que o filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro se torna legível transformando o fantástico em verosímil, o real em fantástico.
Filme perturbador, o filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro percorre, imperturbável, o itinerário de uma aventura mais do que arriscada: a de ser impossível, apaixonada, lucidamente entre, entre uma Idade Média reinventada (ao pequenos pajens, a lenda, a canção) e uma Idade Média real (a charrua puxada por dois jumentos); entre a pedra e o vento (os peixes petrificados pelo gelo, as figuras traçadas na pedra que o vento vai corroendo); entre o deserto gelado da fome (que dele se alimenta) e a esperança de um Sol algures; entre um país que existe e dói (estes Trás-os-Montes) é um país que não existe e dói (o da emigração).
Filme que se procura – e descobre – entre os interstícios das estórias que se evocam, nas rugas dos rostos sem idade, nos jogos ancestrais das crianças; filme que se oculta e desoculta para além e para aquém dele próprio, entre a morte e a evocação da morte; filme que se constrói e desconstroi entre as imagens e as imagens das imagens, entre a vida e a evocação da vida (os retratos antigos, a casa desabitada, a «domus», o passado e o presente). Filme que se perde e se reencontra nos escombros dos casebres, na lama dos caminhos, na neve da montanha, e é uma ausência/presença nos rostos, nas palavras, nos sons.
Filme que cerca um pais cercado – como custa receber ordens de um rei que se não conhece –, filme que nos abro esse país que é nosso e cuja geografia é a do deserto e a da ternura.
Filme que se situa entre o que é ainda possível dizer em imagens, palavras, sons e o que já não é possível exprimir em imagens, palavras, sons – consegue portanto dizer-nos o que de outra maneira não podia ser dito. A sua função, o seu destino, a sua força – é pois a de uma poética inventada plano a plano (e onde surgem ali um Bresson, além um Vermeer).
Filme que cada espectador deve reinventar imagem a imagem, como a câmara reinventa um espaço outro e um tempo outro entre o pai a cavalo que se perde num longe já impossível e a filha que continua a dizer adeus, como a câmara que reinventa o país real no fumo da locomotiva que apita, apita, a caminho de Espanha/Alemanha, o fumo que a câmara transforma numa imagem do fantástico, e acaba por situar o filme entre esse fumo que se transforma em pequena nuvem negra e pesada, carregada de tempestade, carregada de gritos e furor, história que não é idiota porque é um pouco a nossa história, a histórias das nossas frustrações e a seta que aponta para a possível libertação.
Acusar este filme porque se colocar contra Trás-os-Montes ou por não nos mostrar o Trás-os-Montes que existirá, é não entender que o filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro é uma obra única e irreversível que já ninguém pode apagar da nossa história e do nosso quotidiano... Outros Trás-os-Montes existem, todos nós o sabemos. António Reis e Margarida Martins Cordeiro também o sabem, por isso se propõem continuar esta investigação. O seu amor por Trás-os-Montes e o conhecimento que ambos têm do seu povo – esta obra reflecte-os com uma beleza e uma dignidade incomparáveis.
Carlos Porto
Jornal Diário de Lisboa, pág. 14, de 27 de Maio de 1976
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