segunda-feira, outubro 11, 2004

042. "JAIME" - Crítica de Manuel Hermínio Monteiro

"JAIME", UMA OBRA DE ARTE ESPLÊNDIDA

Guardo de 1974 o excelente número da desaparecida revista Cinéfilo preenchida na capa pela fotografia a sépia de Jaime, exactamente como a que abre o filme de António Reis que homenageava. O filme, lembro-me, foi entusiasticamente recebido em plena euforia libertadora pós 25 de Abril. Suspeito, porém, que o êxito demonstrado pela multiplicação de exibições em pequenas salas mais ou menos marginais, sempre seguidas de emocionantes debates, muito ficaram a dever à onda antipsiquiatria em moda na época, que se deliciava com as leituras de Lang, Cooper, Basoglio, Roger Gentis e todos quantos questionavam a obsoleta psiquiatria tradicional. Esta obra estética e poeticamente genial foi, pois, involuntariamente distorcida pela conjuntura. Daí a oportunidade de ser revista agora noutro contexto e sob outra disponibilidade que realce toda a sua globalidade intrínseca, o amor e cumplicidade com a personagem Jaime testemunhadas pelo próprio António Reis numa longa e extraordinária entrevista-conversa com João César Monteiro inserida no referido número da Cinéfilo.
António Reis, vindo do histórico Cineclube do Porto, iniciou a sua experIência cinematográfica com um filme colectivo e experimental, O Auto de Floripes. Colaborou ao nível de textos num filme de Paulo Rocha e, posteriormente, nas filmagens de Acto da Primavera com Manoel de Oliveira. Jaime é, pois, o seu primeiro filme que inaugura uma obra excepcional, talvez a das mais completas encenações poéticas que o cinema português alguma vez conheceu.
Jaime, um camponês beirão fora internado aos 38 anos no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda. Apesar do ambiente concentracionário do local, começou inesperada e sofregamente a escrever e a pintar aos 65 anos. Parte da sua vasta obra desapareceria. Mas o pouco que nos ficou revela-nos, graças aos cuidados de António Reis, um artista de primeiríssima água, revelando um universo de grande beleza e intensidade, como se atravessasse toda a arte milenar, das grutas pré-históricas aos perfis suméricos, mas também expressões artísticas mais próximas como a arte bruta, o expressionismo, o fauvismo. Enfim, revela-nos uma vera e intuitiva sensibilidade como quem, no dizer de António Reis, «habitava o espaço de gruta, subterrâneo ou sideral, com nuvens onde viajavam e sofriam 100 homens dentro».
E como é que o realizador segue a vida deste homem que viveria pintando e escrevendo enclausurado até à morte? Buscando recriar, «não uma história mas um filme onde tudo tem importância até o seu aspecto descascado, sem preciosismos (...) com uma espécie de pudor que comandou a própria concepçâo estética: (à semelhança de Jaime) eu também trabalhei com esferográficas». Acrescenta Reis.
A meu ver, há dois momentos distintos neste filme entrecruzados pelo uso de raccords na busca de uma unidade e com o objectivo claro de enaltecer a obra plástica de Jaime.
Num primeiro momento a câmara vagueia com redobrada atenção e uma aparente pouca curiosidade antropológica pelo pátio interior do Miguel Bombarda. Usada à mão, é uma espécie de olho perscrutador e móvel que nos revela, em sépia, um ambiente circular, vergado nas suas linhas curvas, nos abafados contornos e limites. Aos lugares e mobiliários degradados sobrepõe-se a dignidade dos internados. E nunca António Reis soçobra a qualquer exotismo ou ao insólito. Pelo contrário. Realça, isso sim, os pequenos gestos e os momentos afectivos e inesperada beleza: uma festa num gatinho, figuras imóveis e dignas como estátuas, a água que se solta e desliza do chafariz, sombras de silhuetas humanas recortadas em fundos brancos conferindo-lhes uma surpreendente beleza, etc. Primeiro, o silêncio é uma espécie de sudário absorvendo os gestos, os diálogos imaginados, o abrir das estreitas portas, os movimentos sincopados de um paciente fumando, os pombos que se intrometem na cena. Inesperadamente, irrompe com enorme significado a voz rouca de Louis Armstrong, que acentua a solidão muito dorida do interior do hospício. Mas já então a sépia foi aberta por um belíssimo raccord mostrando a inesperada frescura cromática da urze na montanha agitada pela brisa dos espaços livres. Mas a câmara errante retoma a sépia, concentra-se agora numa velha e suja banheira realçando o buraco negro do ralo como único caminho para o exterior, onde um barco se agita nas águas escuras assopradas pelo som agudo de um vento fortíssimo, quase escatológico, como se tudo quisesse derribar e varrer à sua passagem.
É o segundo grande momento deste filme. Estamos nas terras de Jaime. Do rio Zêzere, das montanhas, do seu meio ambiente rural serrano de camponês e pescador. Sucedem-se então algumas inesquecíveis imagens, das mais belas do cinema. Percebemos que o realizador procura reunir todos os fios com que Jaime terá riscado obsessivamente os seus desenhos. O emaranhado das pontas, freixos descamados. Os vincos na madeira antiquíssima de uma arca aberta. As ripas dos tabiques. Os riscos dos velhos soalhos, o milho espalhado no chão, a dança das maçãs suspensas no interior da casa, os animais como a cabra ou o burro como parte integrante do espaço da casa onde repousam as cebolas e as batatas, e a pipa de vinho, e um arado definitivamente abandonado contra a parede da adega. Arrepiante é a voz da viúva chamando muito alto por Jaime como se ele andasse longe e devesse regressar a casa. E impressionantes são também as inúmeras cartas, quase ilegíveis e densamente preenchidas, que Jaime insiste em enviar assiduamente para sua casa. É delas que António Reis retira algumas frases lapidares entremeando com elas o desfile do fabuloso bestiário de rostos e bichos desenhados com uma profusão de paralelas e sobrepostas sempre, sempre harmoniosa e regradamente como se cada uma fosse o resultado hiperlúcido de entretecimentos múltiplos de uma biografia muitos anos adiada, excluída e providencialmente revelada. Ou como se uma aranha construísse, finalmente, uma teia para recolher e devorar todos os momentos de vida, emoções e memórias que o prenúncio da morte decidiu libertar do mais íntimo deste homem. São estes desenhos que António Reis percorre meticulosamente e com um saber cúmplice, um cuidado único reforçando o máximo de potencialidade estética numa magnífica e demorada abordagem, quase mística e em assumida devoção.
A música, que já foi de Telemann nas sequências da casa ou do exterior, contrapõe, agora, António Reis, os sons metálicos e estridentes de Stockhausen para acompanhar e percorrer pormenorizadamente cada desenho ou o seu conjunto numa tensão e efeito surpreendentes. É nessa altura que o espectador experimenta a vertigem de ascensão e do espanto, dramática e sempre poética. A arte, graças a Reis, torna-se ferozmente absorvente de todo o filme, exercendo subtilmente a mesma volúpia com que Satumo devora o próprio filho. Aqui se revela o saber ver e mostrar e o génio poético de António Reis que parece pretender percorrer um a um os fios de cada desenho. E sempre com a mesma elegante contenção que percorre todo o filme. Nem uma só vez se permite concessões fáceis às imagens que parecem surgir-lhe espontaneamente. Mas a natural intromissão de imagens é aparente e antes fruto de uma curtida simplicidade sim, mas também meticuloso estudo e sobriedade do seu ofício.
Vale bem a pena evocar de novo a conversa-entrevista com João César Monteiro, sob o curioso título «Jaime», o inesperado no cinema português. Nela verificamos que nada, absolutamente nada escapou ao realizador na cuidada preparação deste filme que ele diz que «Às vezes parece que o filme se descose, mas não. Nesse momento estão a equacionar-se outros valores». Diz o realizador, também autor de montagem e de banda sonora.
António Reis, é bom repeti-lo, preparou com objectivos precisos e minuciosamente todo o filme. E explica-o à exaustão. Desde a presença contínua e simbólica da água à silhueta das montanhas, colocada em paralelo com as linhas gráficas hospitalares. Desde o uso de sépia ao da cor. E as figuras humanas elevadas à máxima dignidade de estátuas de Henry Moore ou de Miguel Angelo, assim como simbólico é o friso de homens na barbearia. Nada parece ter-lhe escapado. A cada lúcida observação de João César Monteiro, ele contrapõe sempre algo mais. Seja o uso de travellings (há um sobre um copo de flores que perdura na memória), ao uso de raccords. A música, por exemplo, nunca pretendeu que fosse um sublinhado pleonástico da imagem e, ainda menos, decorativa. Antes um significante como as figuras e momentos que autonomamente vão construindo o complexo e turbulento universo de Jaime.
Mas muito humildemente o realizador proclama não querer dirigir ou influenciar a leitura de cada espectador propondo pelos pressupostos de «obra aberta» segundo Umberto Eco. Que cada um faça a sua própria interpretação. Assim: «Esta poética mística rural, representada por internados, tem vagas sucessivas de significações, quanto a mim, só pela dialéctica de imagem/som entredevorando-se, transformando-se. É abusivo continuar sobre isto, e o encanto foi fazer, descobrir, desesperar, não ter de explicar nada, na esperança de que os outros a sentissem, ouvissem.» É uma explicação como «a chave de um soneto» para um filme magnífico, dos que apetece sempre rever, com o mérito de revelar um grande artista que foi Jaime Fernandes, à semelhança de outros que este país insiste em ocultar.
O final do filme é quase sublime. Retoma ao Miguel Bombarda. A câmara prossegue mais lentamente a sua deambulação. Inicia então um plano ascensional até uma clarabóia onde entra a luz e suportada por uma estrutura em cruz. Um selo contra o céu. Uma foto, e o filme acaba abruptamente como se uma vida acabasse de ser interrompida. Perdura então ainda mais nítida nos nossos ouvidos a voz da mulher de Jaime gritando o seu nome. O nome de um homem a quem a arte abriu a sua alma e fixou a assinatura.

Manuel Hermínio Monteiro - "«Jaime», uma obra de arte esplêndida", in O Olhar de Ulisses. A Utopia e o Real, Porto 2001: Capital Europeia da Cultura, Porto, 2001 e reeditado em Urzes, pp. 215-220, ed. O Independente, Lisboa, 2004

Este texto foi-nos enviado pelo António José Martins. Obrigado António pela colaboração