141. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de José Camacho Costa
[Estreia no cinema Satélite, Lisboa - Sexta-feira, 11 de Junho de 1976]
DUM PAÍS DO LONGE
Há filmes que o são de homem, outros que o são de mulher.
Há ainda os castos, assexuados, derramando pureza, encerrados na sua virginal inutilidade, anti-sépticos, brancos, hospitalares. Odor a coisas mortas, putrefactas.
Este é o filme de um homem e de uma mulher. É de amor que se trata. É de loucura e dúvida que se tece. É de angústia que se eleva. É uma festa de sangue, em raiva e desespero; como dois corpos que se querem, e se descobrem, e se dão; em dor e espanto; e alegria. Como uns olhos de menino num orgasmo de pergunta.
E de súbito somos nós, aqui.
Um olhar que se descobre em memória, e se quer memória de coisas feitas e vividas. Sonho de coisas sonhadas e sentidas.
Gesto. Palavra. Corpo.
É dum país do longe, com sombras pelos rios, sussurros, vento; cansado, já velho, partido, ido; país só de lembranças, de comboios, de cristais nos pulmões; de cola em carta molhada com lágrimas. E sempre o amanhã no voltar e o hoje no ir. E luto. Mulher-herói que é fêmea e imagem do homem na distância. E chão. E dor que se entorna em grito e se transforma em fumo. Mãos que se enrodilham sobre o ventre já esquecido do parto que o rasgou, sonhando a camisa suada e o suor na cama que se faz no amor. Lume. E dança que é sexo de homem erecto em serra-mãe. Sol que se veste em cabeça de menina fitas roxas.
É dum país do longe mas que é cá.
Um filme. O filme. A inteligência e a coragem, isto é a coragem de ser inteligente. Trás-os-Montes. António e Margarida.
José Camacho Costa
Revista ISTO É ESPECTÁCULO, n.º 1, pág. 44, Setembro de 1976 (Director e proprietário: Lauro António)
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