109. FALECIMENTO - Texto de José Bogalheiro
António Reis, nosso mestre
«Dans mon pays, on ne questionne pas un homme ému» (René Char)
Não pode ser. Os telejornais nossos de cada dia dar-nos-ão, sem pedirmos, insistentes apontamentos necrológicos relativos aos seus incontáveis amanuenses e outros mangas-de-alpaca que, apesar de tudo, por lá vão batendo a bota e, a nós, ser-nos-á cada vez mais difícil saber quem são e aprender a estimar os nossos cineastas, os nossos artistas, os nossos homens de cultura.
Como erguer então, em lugar à prova desta brutal barragem, a memória do nosso convívio com eles, se tivermos tido esse privilégio, senão partilhando o que foram os nossos segredos, afirmando algumas nossas íntimas convicções, arriscando indemonstráveis hipóteses?
Trago para aqui três.
A primeira. António Reis, nos últimos quinze anos, foi acima de tudo, um mestre.
Quando, em Fevereiro de 1977, nos encontrámos pela primeira vez, na Cantina do Conservatório Nacional, para acertar pormenores da sua vinda para a Escola de Cinema (onde inicialmente vinha substituir Seixas Santos, que temporariamente se afastara da Escola), pude desde logo aperceber-me de um traço fundamental que o caracterizaria nesta sua nova actividade: o seu radical antiacademismo.
Bem vistas as coisas, o António Reis, que enunciava o seu programa para a cadeira de Espaço Fílmico e desde logo manifestava a sua firme aversão ao título de professor reivindicando manter-se exclusivamente afeiçoado à designação de mestre, era afinal o autor que para mim fora uma revelação absoluta na inesquecível sessão de 14 de Maio de 1974, no Centro Cultural de St. Gilles, em Bruxelas, onde pela primeira vez vi o seu belíssimo e devastador «Jaime».
E porventura também ele terá intuído que para além do aluno, membro do Conselho Directivo da Escola, estava diante dele alguém que o admirava profundamente, ao ponto de me ter afirmado, no jeito da sua amabilidade, que já me conhecia muito bem.
A segunda. Pode haver quem não tenha sido definitivamente marcado por todos os seus filmes mas não haverá nenhum cineasta importante da «nova geração» que possa ter dispensado ou ter a leviandade de ignorar o magistério de António Reis.
É evidente que a sua poética, assente na vida das formas, se encontra mais do que nunca ameaçada pelos «fautores do entrecho» que António Reis tanto criticava.
E os cinemas dominantes encaram, talvez com complacência, a sua defesa cerrada dos valores formais, as suas invectivas a «cortar franco» com tudo o que é academismo, com as formas de produção standardizada, com a normalização narrativa.
E no entanto, quem pode ter dúvidas que o seu foi como o de René Char un métier de pointe e que também ele acreditava que il faut souffler sur quelques leurs pour faire de la bonne lumière?
A terceira. A posição privilegiada em que me encontrei durante este convívio, como aluno à sua chegada, como colega, responsável pela direcção da Escola, no momento da sua partida, permite-me ainda afirmar outra convicção: é que contrariamente ao que em tais circunstâncias se diz e regra geral é verdade, o António Reis é insubstituível na Escola do Cinema.
A sua dedicação incondicional que exigia como contrapartida uma relação afectiva dos alunos, porventura uma adesão indefectível ao que era seguramente a sua maior paixão - a (sua) poesia.
A sua erudição imensa que não o impedia de ser uma força divergente e o levaria talvez até a defender também que as escolas de cinema são precisas para proteger o cinema da televisão.
Coisas tão precisas.
«Se precisares de alguma coisa...» costumava dizer-me o António Reis quando se despedia. Como da última vez.
Precisamos absolutamente.
Nós - sabes quem somos? - que te dizemos:
- Ne te plains pas de vivre plus près de la morte que les mortels.
- Não pode ser.
José Bogalheiro
Jornal JL, pág. 7, 17 de Setembro de 1991
NOTA: Substituímos "Nós - sabemos quem somos?", como se encontra no jornal, por "Nós - sabes quem somos?", como se encontra em "António Reis e Margarida Cordeiro - a poesia da terra", org. Anabela Moutinho e Maria da Graça Lobo. Na mesma página do "Público", Fernando J. B. Martinho publica Pequenos dramas e alegrias discretas, sobre a poesia de António Reis.
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