quarta-feira, setembro 28, 2005

110. FALECIMENTO - Texto de António Cabrita



António Reis

Uma morte não anunciada

«Como quem entra por engano morte dentro». Este verso de Ruy Belo devia ocupar o pensamento de todos os presentes no Cemitério de Benfica, quarta-feira onze, quando se realizava o funeral de António Reis, 64 anos de idade, poeta, cineasta e professor da Escola de Cinema do Conservatório Nacional. A consternação matizava o rosto e os sussurros dos presentes, todos eles indefesos perante esta morte não anunciada. João Mário Grilo, João Botelho, Paulo Rocha, Pedro Costa ou João Bénard da Costa, de entre um punhado mais de amigos, não escondiam a surpresa e à vez relatavam encontros com o cineasta, aparentemente saudável, nas vésperas de uma gripe, rapidamente, o ter vitimado.
O inesperado da sua morte o facto de ter sido omitida no próprio dia pelos órgãos de informação (só no dia seguinte sairia no «Público» uma pequena notícia) foi um dos factores adiantados para explicar tantas ausências no funeral de uma das maiores figuras da cultura portuguesa pós-25 de Abril.
Mas João Mário Grilo iria mais longe: «Chocou-me ver como é que se morre tão sozinho. Foi a enterrar com os amigos, o que também é bonito, mas não sei... o Reis merecia mais, foi alguém de quem todos nós fomos testemunhas. Acho que o país lhe deve muito mais do que ontem lhe pagou. O mundo da cultura esteve um bocadinho ausente e não senti a presença dos órgãos de representação pública».
Originário de uma aldeia próxima do Porto e de origens muito humildes, António Reis passou a sua infância e adolescência junto de camponeses, operários e pescadores; experiência que lhe seria essencial para a justeza dos diálogos que escreveria mais tarde em Mudar de Vida, de Paulo Rocha.
Ainda operário fabril começa a escrever poemas, prática que o levaria nos anos 57 e 60 a duas recolhas, Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos, com que marcaria uma diferença em relação às linhas de força que tenderiam a sufragar o veio lírico dos anos sessenta.
Entretanto, frequentava o Cine-Clube do Porto, decisivo para a sua formação, onde, integrado na Secção de Cinema Experimental do Cine-Clube, participou na feitura de Auto de Floripes (59); tendo colaborado também em dois documentários pouco vistos, Painéis do Porto (63) e Do Rio Ao Céu (64).
Mas seria em 73 que a sua carreira conheceria o balanceamento decisivo com Jaime, retrato de um louco que se revelava um génio plástico, que João César Monteiro classificaria como «um dos mais belos filmes da história do cinema».
Seguiram-se Trás-os-Montes (74-75), Ana (81) e Rosa de Areia (88), os três co-realizados com Margarida Cordeiro, que cimentaram um cinema poético, não narrativo, que surpreendeu a Europa e constituía um exemplo contra a ditadura do cinema comercial. João Mário Grilo: «António Reis e Margarida Gil experimentaram o cinema como uma arte e foram os últimos a fazê-lo em liberdade radical».

Cinema de reflexão,
contemplativo

Esta última questão, a da sobrevivência de uma diferença genuína do cinema português em relação aos modelos narrativos dominantes, é uma questão que preocupa agora ainda mais os últimos defensores de um cinema mais reflexão, contemplativo, que tinha em Reis uma das suas figuras tutelares. «O cinema português está de luto e vejo com grade inquietação o seu futuro, porque as novas regras de produção, industrializando-o, tenderão a neutralizar o que lhe era específico», frisou Acácio de Almeida, que assinou a fotografia de todos os filmes de Reis e que é de momento um dos técnicos mais prestigiados da Europa.
Opinião que é corroborada por José Bogalheiro, chefe de produção e também ele professor da Escola de Cinema: «No panorama do cinema português, vai abrir-se uma brecha. O silêncio dos meios de comunicação sobre a morte do Reis é um sintoma das novas maiorias. Mesmo em termos de vazio que ele deixa na Escola é um lugar impreenchível. O Reis era um representante de um cinema minoritário e tinha uma poética que entre os alunos provocava adesões».
Serão, doravante, sempre póstumas as homenagens.

António Cabrita

Jornal Expresso, 21 de Setembro de 1991