151. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Jorge Alves da Silva
CONTRA O CÉU
O OLMO
Reparte uma das figuras do nosso saber a possibilidade de existências do humano, por uma original e funda censura entre a Natureza e a Cultura. Por essa separação terá o humano encontra do abrigo. Assim passou a nossa convivência com a antiga e desencontrada harmonia, a ser medida pelo olhar e pela palavra.
Trás-os-Montes existe na procura de um espaço-pátria, não no sentido de uma unidade política ou da sobrevivência de uma memória de lutas, mas de um espaço morada, de um espaço onde antes de mais foi possível a constituição de um viver, de um habitar fundo. E que foi feito dele? Por que margens da terra se dividiu a sua unidade, a morosa e imemorial sedimentação? Pelos quatros cantos do mundo?
Quando num momento em que uma das muitas microficções (que constituem o ponteado do filme) vacila (a memória da mãe na memória do filho), numa incerteza de atribuição, de saber em quem se está, abre-se uma muito bela panorâmica vertical, que desce do topo à base de um olmo. E o espaço flúi à volta dessa força.
Não será esta majestade vegetal, uma das fugas nucleares deste filme? Ou seja não exige ela, pelo tempo em que está presente, que se adivinhe do raso da nossa memória que o olmo, silencioso ideograma, condensa a dispersão de um saber, de uma aprendizagem da terra, do dia, do tempo e da estação que revém. Que perdida esta contiguidade, os pontos cardeais do tempo da vida, errarão os que lhe sobrevivam por um deserto. E não é essa experiência da errância, a experiência contemporânea? Da convulsão planetária, de uma crise de norte a sul, pouco se fala em directo. Antes, do tempo aparentemente recuado que faz recuar o nosso, se interroga, se convoca a lei, se suspende o correr normal do mundo, o olhar devolvido ou revolvido, como se paradoxalmente (não falo de referente, o filme não o tem) o filme nos olhasse.
Aquilo a que por convenção ou necessidade de arquivo se chamou de gesto etnológico no cinema, redução que transportou do mesmo movimento o trabalho de Flaherty, a Índia de Rosselini, os filmes do Rouch (quase que é possível perguntar porque não The River do Renoir e o Tabou de Murnau), consistiu num tempo em que esse gesto de olhar parecia ainda puro de cargas adicionais, em fazer ler a partir da nossa (Ocidental) sã constituição, a impureza, o acidente, o acidente de atraso, a estranheza como possíveis retratos da nossa primitividade, vestígios que a nossa memória só transversalmente reteve.
Agora mesmo sabendo que o olhar do etnólogo não é um saber inocente, não constitui a lei do Outro a partir de um normal sem questão, como conseguir reduzir, para nossa calma, essa proximidade e distância em que o filme fala, esclarecendo melhor, não digo de que fala o filme ou sobre que fala o filme, digo que o filme fala aí no espaço reserva do nosso espaço. E dizer, que o atraso é herança e descuido ou desprezo do fascismo, de que vimos, que adianta, que esclarece? Nada.
Trás-os-Montes, província. Trás-os-Montes ao abrigo de um turismo, pátria de segredos a recuperar, a colocar em museu, a rapidamente colonizar, por em cachão (ou caixão) – as figuras do nosso presente contra a memória, contra o presente de raiz. Princípio do colonial: contra estas vozes do silêncio, um silêncio sem voz.
Sabes o que é um olmo?
TURVOS DIZERES
Muitos são os planos em que o raccord se segura, (talvez como armadilha) pelo olhar. Mas qual o espaço, paredes, vertentes, horizontes, que está um contra outro. Define-se alguma vez o fecho de um quarto, o lado de um desses olhares? Mesmo no título o que se diz é todo um espaço, todo um continente. Tal como numa das mais belas obras modernas, violenta e sacra, Eden, Eden, Eden de Pierre Guyotat, o funcionamento geral é a frase sem interrupção, sem começo e sem fim, apenas destacada de um outro corpo de obra, que é o balbuciar ininterrupto do dizer.
Histórias, lendas, cenas, memórias, citações num único movimento, numa única panorâmica de todos os solos históricos, de todo o tempo num só momento. Assim pode-se dizer que cada um dos personagens que aparecem, não vêm a constituir múltiplos aspectos, sinais de variedade e riqueza de diverso, antes são não uma soma, mas uma montagem, como dissemos, um ideograma.
Wordloosed over seven seas, James Joyce, Finnegans Wake.
A memória desta terra estaria assim latente, pronta a dizer-se, se o olho que escuta, como dizia Claudel, lhe desse tempo, atenção. Seria menos uma rememorização dos mortos, mais o leque de forças vivas, de informações fundamentais, de culturas, de gestos e dizeres que estão a um tempo presentes e ocultos numa ganga, numa casca de urbanidade e contingência. A obra aqui feita, continuada noutros, seria essa escuta que olha os vários acessos a esse núcleo do ser.
Trás-os-Montes é um objecto privilegiado não pela salvaguarda que o tempo e o abandono da «capital» lhe teria dado, mantendo a sua «pureza original», a sua «imaculada concepção», mas porque aí existe precisamente um menos de dissimulação, um combate de forças, para que todos têm tempo.
Porque falamos? Que dizemos? Que ouvimos? Que fazemos? Todo um certo cinema (para nos reduzirmos a ele) procura aí uma razão de trabalho.
Qual a circulação de nós pelos corredores do Capital, quais as respostas que damos a perguntas que não ouvimos, mas às quais damos livre trânsito. Que desliza pelo nosso olhar que não vemos?
Fazer dizer um texto de Kafka a um camponês mirandês, traduzir esse texto, num dialecto, para que finalmente o possamos ouvir. Somente por essa violência brusca, podemos finalmente ouvir. A lei fica suspensa na sua feitura, e é possível então perguntar-lhe.
Este é um país deserto, com uma geração a menos. E como compreendem as crianças que ficam os velhos tão perto da morte como de um obstinado segredo. O tempo de produção está ausente. O trabalho das minas deixou o lugar de um trauma. O trabalho agora, emigrado com os corpos, é noutro país. «Alemanha, Espanha».
Esse exílio formará outras famílias, outras habitações que coexistem, melhor que não existem, lado a lado, como as da aldeia, em que o choro pelos feridos da mina, era um choro colectivo, ligado por proximidades de paredes e de famílias constituídas umas das outras ao longo do tempo. Todos tão perto da lei como do incesto.
O «moderno» formou-se como ruptura contra a gramática de tudo, por intensidades opressivas, por insistências pontuais – assim um Pollock, um Artaud, um Stockausen, um Godard. E um Pessoa e um Sá-Carneiro. Todos rebentaram contra o muro da linguagem, como dizia Eduardo Lourenço de Mário de Sá-Carneiro.
SEQUÊNCIA
E porquê no espaço do filme, privilegiar o alinhamento de alguns raccords, como se fosse aí – nessa escolha – que alguma certeza quanto ao «corte» deste filme, se assegurasse? Ao chegar de fora – Argentina – o pai, e para que este a achasse bem, decora-se a filha de outro vestido e de uma fita nos cabelos. Pouco é o tempo que o pai tem para olhar, como se a razão de toda uma viagem fosse o imperativo de a ver. A filha contra a terra e o pai contra o céu.
RIVERRUN
Deserto o país de gentes, uns mortos e enterrados pela idade, apartados os outros pelas indústrias, sem quem lavre o campo e «pastoreie as serras», quem lhes ocupará o espaço e lhes ouvirá o grito?
Texto lateral com citações de Maurice Blanchot, Georges Duzémil, Edmond Jabés, Jacques Lacan, Teixeira de Pacoaes:
(pensamento ou sentimento)
Um país que já não tem lendas, diz o poeta, está condenado a morrer de frio. É possível. Mas um povo sem mitos está morto.
A função da classe particular de lendas que são os mitos, é a de exprimir dramaticamente a ideologia de que vive a sociedade, de manter na sua consciência não apenas os valores que ela reconhece e os ideais que persegue de geração em geração, mas antes de mais o seu próprio ser e estrutura, os elementos, as ligações, os equilíbrios, as tensões que a constituem, de justificar as regras e as práticas tradicionais sem as quais tudo se dispersaria.
Na nossa relação às coisas, tal como é constituída pela via da visão, e ordenada nas figuras da representação, há algo que desliza, passa, transmite-se, de degrau em degrau, para estar sempre presente num modo elidido - é isto que se chama olhar.
Ó cidade, disse eu rezando, já que em breve eu não poderei mais com a minha linguagem comunicar contigo, deixa-me gozar até ao fim das coisas às quais as palavras respondem se se quebram.
A voz que tem sinais e cicatrizes, dolorosas, profundas, indeléveis, de haver pousado na surdez dos Deuses!
Na palavra olho, há a palavra lei. Todo o olhar contém a lei.
Jorge Alves da Silva
Revista M - Revista de Cinema, págs. 39-42, 4 de Junho de 1977.
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