terça-feira, setembro 07, 2004

015. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Eduardo Prado Coelho

Uma das linhas mais produtivas do cinema português tem sido a da descoberta, em termos de pesquisa antropológica, de uma realidade rural em vias de desaparecimento. Situado numa orla da Europa, Portugal tem a pecularidade de viver múltiplos tempos simultâneos. O fenómeno da emigração produziu no mesmo lance uma degradação das condições de progresso de determinadas regiões e o efeito de choque do retorno ou da passagem cíclica daqueles que vivem ou viveram por uns tempos em terras estrangeiras. Desse modo as contradições agudizaram-se e os contrastes tornaram-se mais gritantes.
Em determinado momento, um sector muito significativo dos trabalhadores de cinema decidiu intervir na recolha de toda uma memória cultural do nosso povo prestes a ser varrida pelos moldes uniformizantes da cultura de massas: daí nasceu o projecto de um Museu da Imagem e do Som. A própria designação envolvida um paradoxo: largando a ficção para ir à procura de uma realidade concreta, os cineastras recolhiam apenas material para museu. Grande parte destes filmes aparece, no fundo, como feita de obras de uma certa ficção. Isto é, por um esforço pertinaz de abstracção, eles fingem que uma determinada realidade permanece inalterada, e procuram filmá-la na sua intangível pureza através do recalcamento de tudo aquilo que poderia perturbar a nitidez matinal do retrato. São obras, quase sempre admiráveis, que se alimentam de uma comum ficção da cultura popular. A critica, sensível à violência desta abstracção, designa-as habitualmente pela palavra mais alta que se atribui a realidades deste tipo: trata-se de poesia. E a expressão famosa de Novalis
(quanto mais poético, mais verdadeiro) tem aqui inteiro cabimento.
Neste domínio, são de um enorme interesse, sobretudo pelo engenhoso das soluções narrativas, os trabalhos de António Campos: Vilarinho das Furnas (1971), Falamos de Rio de Onor (1974) – e podemos notar como o próprio título coloca aqui o problema, central no autor, do lugar de enunciação do discurso dito documental –, Gente da Praia da Vieira (1975), para não referirmos já essa estranha ficção retardada e constrangida por um enorme respeito pela realidade em si mesma que é Histórias Selvagens (1978). Mas merecem ainda menção, entre outros, Noémia Delgado (Máscaras, 1976), Leonel Brito (Colónia e Vilões e Gente do Norte, 1977), Fernando Matos Silva (Argozelo, 1977), Manuel Costa e Silva (Festa, Trabalho e Pão em Grijó de Parada e Madanela, 1977), etc...

Trás-os-Montes de António Reis começa por ser um projecto que arranca deste «movimento antropológico» do cinema português. Mas, tomando à letra o ensinamento de Novalis, leva mais fundo e longe a abstracção ficcional: este «retrata» uma realidade que já não existe, que nunca existiu, impossível de existir, mas retrata-a com a mais implacável das fidelidades. Fidelidade a quê? Diríamos que a uma visão do mundo, no sentido mais visionário da fórmula, ou, se não tivermos medo da palavra, a uma metafísica (Ana será a revelação plena disso). Talvez isto explique as peripécias que rodearam o lançamento do filme. Quando se começou a falar numa película sobre Trás-os-Montes, certos meios da região em causa terão pensado que se tratava de um trabalho que documentasse o viver actual da província. Daí o equivoco, que levou à convicta, ou manipulada, indignação dos que pretendiam que o filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro deveria ser um documentário de teor turístico sobre
Trás-os-Montes. Ora o trabalho de António Reis e Margarida Martins Cordeiro não somente era outra coisa, como era um acto de resistência ao olhar turístico sobre a realidade. Porque o olhar turístico passa, o cinema de Trás-os-Montes instaura. A realidade aqui não é dada, mas consagrada. Esta perspectiva de arte desenvolve-se na mais imanente das religiosidades. Daí a dificuldade que há em pronunciar sobre ela qualquer fala que se não sinta excedente ou profana.
Um dos aspectos mais interessantes do filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro tem certamente a ver com as relações do espaço e do tempo. Estamos habituados a descobrir uma região deslocando-nos no seu espaço. Mas por vezes podemos tentar fazer a história dessa região – deslocando-nos no seu tempo. O que Trás-os-Montes realiza, com uma prodigiosa naturalidade, é uma deslocação no espaço que é simultaneamente uma deslocação no tempo. Por outras palavras, a geografia converte-se em memória: é toda uma imensa riqueza de símbolos, lendas, ritmos, que se vem inscrever – pastoralmente – sobre o corpo da terra. Há aqui, nestes caminhos que não levam a parte alguma, um sabor heideggeriano: o cinema transforma-se em pastor do ser que é talvez a lição dos admiráveis planos iniciais do frágil pastorinho conduzindo os animais ao seu destino. O que mais nele nos comove é o seu antiquíssimo saber da voz, que lhe permite formular as palavras justas, e essa agudíssima inconsciência de um destino que o atravessa, sem que ele o pressinta, para além da evidência primeira de todas as coisas.

Eduardo Prado Coelho – Vinte Anos de Cinema português (1962–1982), 1.ª edição, págs. 69-72, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, Lisboa, 1983.