089. "ROSA DE AREIA" - a propósito do catálogo "AR e MC - a poesia da terra"
Cinemateca Portuguesa-Museu de Cinema,
António Reis e Margarida Cordeiro: a poesia da terra
Faro, 23 de Novembro de 1997.
Rosa de Areia ficou como o último fime realizado por António Reis, que morreria menos de dois anos depois da conclusão deste trabalho. E é um filme que permaneceu, ao longo destes oito anos, inédito nas salas comerciais portuguesas. Ou seja, é um filme que ficou praticamente invisível durante todo este tempo, exceptuando esporádicas exibições em Festivais ou em salas como a da Cinemateca.
Quando preparavam e rodavam Rosa de Areia, António Reis e Margarida Cordeiro não sabiam que este haveria de ficar como o filme definitivo da dupla. Por isso talvez não seja muito útil recorrer ao chavão, sempre tentador quando se trata de "últimos filmes", do "filme-testamento". Pelo contrário, parece evidente em Rosa de Areia uma vontade de apontar para novos caminhos, de experimentar coisas novas, que não se compadece com o registo de súmula que normalmente caracteriza os "testamentos". Se em Rosa de Areia está uma série de temas e de ideias desenvolvidas nas obras anteriores, o filme aponta decisivamente para o futuro, para um percurso no qual António Reis não terá tido tempo senão de dar os primeiros passos. De Jaime a Ana não há nenhum outro filme onde o radicalismos estético de Reis e Cordeiro tenha aparecido assim, de maneira tão exuberante e tão abertamente "experimental". Rosa de Areia é assim uma espécie de "filme incompleto", como um esboço, capaz de gerar uma descendência (tivesse Reis tido tempo para isso) porventura ainda mais fascinante do que ele próprio. Rosa de Areia é um filme que está muito longe de se fechar a si próprio, o seu movimento é para fora, não é para dentro: há poucos filmes capazes de criar, como este cria, hipóteses para a sua descendência.
É curioso que, numa entrevista concedida aos Cahiers por ocasião da estreia de Ana, tenha sido perguntado a António Reis e Margarida Cordeiro se não encaravam a hipótese de, um dia, fazerem um filme a partir de uma adaptação literária. Apesar da série de renitências apresentadas pelos realizadores, não havia um não definitivo e Reis acabava mesmo por dizer que, provavelmente, um dia acabaria por conceber um filme assim. O que é interessante nisto é que se Rosa de Areia (o filme que se seguiu a Ana) não é propriamente uma adaptação literária, é o filme que, na obra de Reis e Cordeiro, vem trazer a questão da relação do cinema com a literatura. Questão que não se põe aqui, evidentemente, com os termos com que costuma pôr-se: não há adaptação nem mesmo uma qualquer narrativa pedida "emprestada". O que há é uma selecção de textos (que vão de Montaigne a Kafka, de relatos jurídicos da Idade Média a Carl Sagan), lidos ou declamados pelos actores do filme, e organizados segundo um trabalho que tem sobretudo a ver com a ideia de "colagem". Se os filmes de Reis e Cordeiro sempre se afastaram do naturalismo, Rosa de Areia é que vai mais longe na procura do artifício - e esta opção marca um dos percursos que aqui se inauguravam. O estilo de "colagem" que marca a organização (tanto a "literária" como a montagem) já diz um pouco sobre isso, mas o artifício está ainda presente na convocação do teatro, aparentemente ausente da obra de Reis e Cordeiro (embora haja alguns momentos de Trás-os-Montes e de Ana em que certos rituais familiares e sociais são filmados como se se estivesse a filmar teatro), e no modo como quase todos os planos do filme são compostos a partir de um jogo de pura sensibilidade estética, decidido muitas vezes a partir de equilíbrios ou confrontos cromáticos.
Daqui resulta um filme que é um desafio: um desafio, primeiro, aos cânones e normas estabelecidas (a dificuldade para encontrar quem o quisesse estrear é um sintoma da violência deste desafio); um desafio, depois, ao espectador: para entrar nesta espécie de palco cósmico onde se encenam os mais variados tempos e lugares (Rosa de Areia é um filme de lugar nenhum, num tempo sem data, mas é em simultâneo um filme de todos os lugares e de todos os tempos) é preciso merecê-lo e avançar de espírito tão despojado quanto possível. Afinal de contas, o que está aqui em causa, mais do que a poesia da terra, é a poesia da Terra.
Luís Miguel Oliveira
in Textos CP, Pasta 56-439-440. Genérico e análise
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