171. «ANA» - Crítica de João Lopes
[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]
ver, ouvir e ler
Um filme
Elogio da arte de viver
Por uma vez, talvez valha a pena começar pela história antes de tentar habitá-la (e, porque não?, inventá-la) e recordar: Ana de António Reis e Margarida Cordeiro, é o terceiro título de um espaço de criação que fere, antes do mais, pela irredutibilidade dos seus propósitos e dos seus métodos. Depois de Jaime (1972) e Trás-os-Montes (1976), os dois cineastas vêm confirmar de modo exuberante que são sujeitos de um universo cinematográfico tão radical quanto independente. De certo modo, Ana contém os filmes anteriores – por ele passa a instabilidade das formas de Jaime e a solidez das estruturas de Trás-os-Montes -, ao mesmo tempo que amplia os seus efeitos e desloca o seu universo. Teremos, então, que repensar a nossa própria relação com o cinema feito acto de projecção para habitarmos o país de Ana.
E depois da história? Vêm as histórias. E Ana pode ser visto como uma arquitectura fascinante de histórias, umas grandes, outras pequenas, umas contendo outras, outras negando-se a qualquer subordinação a qualquer espaço de narratividade que não seja aquele que, pacientemente, por vezes desesperadamente, vão conquistando. Por um lado, estamos perante um filme que aceita os fragmentos renovados do tempo como matéria fundamental do seu espaço de visão (são as estações e as diferenças que vão instalando nos dados mediatos do espaço); por outro lado, descobrimos com um fascínio persistente que esse carácter cíclico se enreda com o movimento da vida e da morte, das vidas e da mortes, perturbando a linearidade inicial do próprio espaço.
Nesta perspectiva, somos tentados a afirmar que Ana se faz e refaz em deslocações subtis de significado(s) e contexto(s). Mas seria demasiado fácil, porventura equívoco, considerar apenas que o filme vive dessas passagens sistemáticas entre contrários (o «natural» e o «familiar», o «verosímil» e o «onírico», o «documental» e a «ficção»). Na verdade, a identificação dessas passagens tem ainda a ver com um desejo de nomeação que a escrita ou a fala programam, mas que Ana, embora contendo-os, excede.
O que Ana nos pede é, então, o mais simples, mas também o mais cruel – nenhuma caução cultural pode apaziguar o que nele se diz como instabilidade infinita de qualquer dispositivo artístico. Recordo aqui a afirmação velha, mas exemplarmente moderna na sua resistência a qualquer classificação, de Brechet: Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes: a arte de viver. O trabalho de António Reis e Margarida Cordeiro liga-se inteiramente a esse principio, no sentido em que, concebendo o (seu) cinema como um território de absoluta solidão criadora, nunca se tenta afirmar numa zona cinematográfica que não seja, ao mesmo tempo, uma zona de vida.
Daí que seja necessário falar de formas. O triunfo absoluto do filme é, na verdade, formal. A afirmação suscita inevitáveis dúvidas, eu sei, mas talvez que atravessar Ana seja, sobretudo saber vencer essas dúvidas e conquistar por inteiro os sentidos diversos desse modo de ser. No indecifrável da infância ou na quietude sábia da velhice, no apelo plural da vida ou na serenidade imensa das imagens da morte (raras vezes um filme terá dito assim, de forma tão exuberante e, por assim dizer, tão viva, o desaguar cruel da vida na morte), Ana gera as suas «formas», sabendo administrar de madeira absolutamente única os seus «conteúdos».
Sabe-se, em Ana, que nenhum conteúdo é exterior às formas da sua apropriação – qualquer conteúdo é já forma. A mensagem solitária, irrecusável de Ana é, por isso, de natureza cósmica: viver é descobrir este enlear de cada forma no desejo de outra(s). Sendo formal, isto é, teimosamente livre até à eclosão da última forma: essa em que, apesar da morte, ainda é possível viver – dizer Ana.
João Lopes
Jornal Diário de Notícias, pág. 52, de 9 de Maio de 1985.
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