quinta-feira, janeiro 17, 2008

170. «ANA» - Crítica de Jorge Leitão Ramos

[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]

O cinema faz-se poesia, perde âncoras, ganha espasmos. Há um universo a receber, um mundo de coisas essenciais e antigas que regressa ao nosso coração. E também incomonidades [incomodidades], asprezas [asperezas]. Como diria Truffaut, Ana é um grande filme doente.

"ANA"

De António Reis e Margarida Cordeiro

A poesia, o que é? A transfiguração do mundo na cabeça do poeta, devolvida até nós através de sinais urgentes, às vezes cifrados, outras trazendo consigo límpidas revelações. A poesia não se racionaliza, nem é só sentimento, vive no cruzamento do saber com outras coisas que não sei se têm nome, mas existem. A poesia traz sempre consigo a edificação de uma realidade que só é também a nossa porque, para que aconteça, é preciso que fale de algo de essencial: amor, morte, espantos.

Não sei se alguma vez o cinema foi poesia; com Ana, é. O crepitar do fogo rima com o ruído ciciado da seara cortada à foice, as cortinas de linho ondulando sobre a criança nua ligam com os frutos à janela, a ama – nossa – senhora em altar postada tem a íntima verdade das pedras românicas, a paisagem agreste e turbada de Trás-os-Montes é o cenário do princípio do mundo, este filme chama a si toda a memória aninhada nas concavidades da alma, esse vício (como diz Agustina/Oliveira), para a espalhar em pedaços de cinema, imagem e som (o som é fundamental em Ana) – dir-se-iam visões, e são.

A poesia não se contrabandeia neste meu texto, está no filme para quem a puder (e quiser) partilhar.

Mas terá a poesia arrebatamento que baste para obliterar o que neste filme arranha, quer dizer, nos acorda do êxtase para a fria realidade da matéria?

Por exemplo: as falas sincopadas – «falsas» – de todos os intérpretes não deixarão o espectador ancorado nessa aspereza e, portanto, menos disposto ao embarque na nave do mistério? A evidente obscuridade do estatuto dos personagens (quem é o fulano? porque está ali? o que faz? que tempo é antes, que tempo é depois, quanto tempo?), as marcas de «construção» (um olhar antes de tempo, uma impaciência, um símbolo demasiado óbvio e gasto – lembrando a jovem Ana de vermelho/verde vestida), e suma, tudo o que não desliza e fica entre realidades (nem naturalismo, nem ritualização) não fará empalidecer a luz vivíssima que, a espaços, este filme ergue?

Eu sei: a poesia é a arte da manipulação da matéria, depois do poeta passar nada tem a espessura anterior. Não peço que me contem uma história; gostaria é de nunca sair do enlevo – e saí, várias vezes, por portas bem incómodas. No fundo, este filme é capaz de ser perfeito e, aqui, ali, tosco, irrespirável de exactidão e, mais adiante, a esvair-se. O que mais turba: sente-se que foi feito como se fosse a mais importante tarefa de uma vida, nos limites do amor; por isso, aquilo que comunica é tão intraduzível, por isso aquilo em que não acerta é tão doloroso, tão irritante.

O caminho de António Reis e de Margarida Cordeiro tem já balizas. Num primeiro filme (Jaime) fez-se uma aproximação a uma realidade exterior (um homem louco, que pintara obsessivamente nos últimos anos do seu internamento no Hospital Miguel Bombarda); num segundo voo (Trás-os-Montes) há já um investimento pessoal (a terra-mãe de Margarida Cordeiro), um rebuscar em si; neste terceiro filme (Ana) esse caminho atinge a célula familiar (Ana Maria Martins Guerra, a protagonista, é a mãe de Margarida Cordeiro) naquilo que ela tem de mais forte, a ligação maternal. Curiosidade à medida que o universo «temático» (palavra incorrecta, mas que uso para simplificar razões) se fecha, o cinema abre-se, perde amarras realistas, por um lado, e estende-se à percepção cósmica das coisas, por outro.

Ao mesmo tempo, António Reis e Margarida Cordeiro arriscam cada vez mais (eu diria que Ana vai do infinito ao infinitésimo, do mais pequeno e simples gesto, à harmonia dos astros no seu movimento através do céu...), esticam a corda do possível, trabalham em território não sinalizado, desbravam. Ganham e perdem. Ana é um filme que quer o fogo sagrado e rouba-o dos céus – mas não sempre, mas não por inteiro.

Resta dizer que há que retribuir a este filme amor com amor serenidade com serenidade, franqueza com franqueza. Com a certeza que esse lago circular, matriz do universo, que fecha Ana, tem em si inesgotáveis filhos para oferecer ao nosso olhar: os próximos filmes que hão-de fazer.

P.S. A Comissão de Qualidade, com a competência a que já nos está a habituar, recusou a Ana a classificação de «filme de qualidade». O texto que atrás fica escrito mostra que não pertenço aos que afirmam obra-prima o mais recente filme de António Reis e Margarida Cordeiro. Isso não impede que, não sendo cego, nem surdo, nem duro de coração, considere Ana uma obra de enorme fôlego que ousa organizar materiais cinematográficos de forma inovadora, brilhante – revolucionária? É absolutamente infame que um conjunto de pessoas, nomeadas pelo Estado, para avaliarem filmes em seu nome, sejam a tal ponto insensíveis, embotadas, incompetentes. Depois dos casos de Diário íntimo, de Paulina na praia e, agora, de Ana a única atitude a tomar é exigir a demissão urgente de tal comissão. Há limites para tudo.

Jornal Diário de Lisboa, pág. 19, 5.ª feira, 9 de Maio de 1985.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

beaucoup appris

3:22 da manhã  

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