106. FALECIMENTO - Texto do cineasta Paulo Rocha
Uma figura luminosa
Quando voltei de Locarno, em 63, trazia já a ideia do «Mudar de Vida». Pedi ajuda ao Bragança para os diálogos, mas ele não sabia nada de pescadores, e mandou-me para o Cardoso Pires. O C. P. gostava de cinema, e estava no auge da fama: acabara de adaptar «As Ilhas Encantadas» do Melvile para a fita do Vilardebó. O C.P. também sabia pouco de gente do mar, e mandou-me para a minha terra, o Porto, falar com o António Reis. Pouco conhecido cá em baixo, o António era uma figura muito activa na cena portuense.
Fazia trabalhos de campo, estudava a poesia popular do Alentejo e as falas dos pescadores da costa norte. Tinha sido um dos autores da «Arquitectura Popular Portuguesa», um livro muito citado pelos arquitectos da escola do Porto. Era amigo do Lixa Filgueiras, a grande autoridade sobre arquitectura naval tradicional, e planeava fazer um filme sobre o barco rabelo do Douro. L. Filgueiras seria mais tarde um personagem inesquecível num dos seus filmes de fundo. Para o Cine Clube do Porto ajudara a rodar o «Auto de Floripes», e tinha sido assistente do M. de Oliveira para o «Auto da Primavera». Estava a preparar uma tese de doutoramento numa universidade suíça sobre questões de cultura popular.
E era sobretudo um grande poeta, de poucas palavras, que dizia o essencial através da experiência das coisas banais. Na cultura portuense de esquerda daquela época, o A. R. era uma figura luminosa. Humilde, humilhado, secreto, vegetava nos escritórios da Vista Alegre, em Gaia. Odiava a arrogância de um patrão marialva e acompanhava de perto o fluir da vida comum. À primeira vista parecia um operário. Morava num apartamento em Gaia com vista para o rio. As paredes estavam cobertas com bonecos de pano de todas as cores, feitos pelos loucos de um asilo. Os bonecos eram monstros de várias cabeças e muitas pernas, e anunciavam já os desenhos de Jaime. Naquelas janelas que davam para o nevoeiro do rio havia uma energia irracional, um sopro vital à beira do abismo.
Com os meus complexos de meninote afortunado, fiquei rendido… E o António deu-me uma grande lição. Trabalhou nos diálogos durante seis meses, riscando e deitando fora. Cada dia mais magro, sempre em suores frios, à procura da vírgula, da pausa, da assonância secreta e expressiva. Os diálogos, arrancados a ferros, chegavam às filmagens à última hora, e não havia tempo para reflectir sobre eles. Só anos mais tarde, quando o «Mudar» se estreou comercialmente em Tóquio, é que tive oportunidade de os estudar. O trabalho de os traduzir para japonês era muito lento, e só assim pude descobrir a concisão musical, a riqueza secreta daquelas frases escritas com um ouvido infalível. Quantos diálogos haverá na nossa língua que se lhe possam comparar?
Mais tarde, quando traduzi do japonês uma série de 50 Haiku que foram publicados em álbum pela Moraes, pedi-lhe ajuda para «limpar» o texto. Não sei escrever em português, caio sempre em literatices falsas. Foi um trabalho de meses, as melhores aulas que tive na minha vida. O António sentia o peso de cada palavra, de cada sílaba, fugia aos efeitos. Por influência dos haiku o António recomeçou a escrever poesia, lembro-me de ele me recitar um quase haiku belíssimo, uma cena de matança. Era sobre a neve a cair no prato, onde coalhava o sangue do porco. Onde estará este poema? Havia outro, misterioso, dedicado a um olmo. Perdido também? Começou a estudar chinês, apaixonou-se pelo Tufu, de quem eu lhe emprestei uma edição bilingue, comentada. Acabou por pôr o nome de Tufu a um grande mocho que vivia lá por casa em liberdade. O poeta chinês deve ter ficado encantado, lá no assento etéreo.
Cinema profissional em Lisboa
Quando o C.P.C. se criou em Lisboa o António veio trabalhar para a Guérin em Lisboa, decidido a tentar a sua sorte no cinema profissional, onde ele não conhecia ninguém. A Margarida Cordeiro descobriu no hospital os desenhos do Jaime, e o António explicou aos sócios o que queria fazer, com aquele calor humano que só ele tinha. As pessoas ficaram apaixonadas pelo projecto, e como eu era presidente do centro aproveitei para pedinchar a ajuda de todos. Uns deram restos de película, o Acácio trouxe a equipa de imagem e o material, o filme foi nascendo numa atmosfera extraordinária de camaradagem. O resultado causou uma emoção considerável, e o António ganhou com ele na Alemanha o primeiro dos três grandes prémios internacionais que os seus filmes viriam a obter.
Quando veio o 25 de Abril o C.P.C. estremeceu. Os sócios acabaram por formar cooperativas independentes, já não precisavam do apoio de um órgão unitário coeso. Eu aproveitei a confusão para lançar o «Trás-os-Montes» como um projecto piloto de um futuro Museu da Imagem e do Som, um título populista grato ao poder revolucionário, e que eu tinha trazido do Rio de Janeiro. Lembro-me das salas vazias do centro, enquanto que os meus colegas andavam pelas ruas a filmar.
Eu e o António Reis ficámos sozinhos na sede a preparar os dossiers, a apresentar o museu e a pedir o dinheiro, que acabou por vir. Quase todas as fitas revolucionárias estão hoje esquecidas, mas o filme do António e da Margarida foi uma obra-prima que lhes deu fama europeia. Quando o filme estreou em Paris, no «Le Monde» saiu uma ordem terrorista assinada pelo Joris Ivens e pelo Jean Rouch, os dois mestres supremos do cinema documental: «Allez voir, toutes affaires cessantes, "Trás-os-Montes"!».
Durante dez anos o casal foi o ai-Jesus de uma certa crítica de vanguarda. A Kristeva correspondia-se com o António, e as pessoas que o encontravam nos festivais lá fora falavam dele mais tarde com a voz a tremer como se tivessem encontrado um profeta. Para esta aura ajudava o estranho magnetismo do António, e o trabalho incansável do António Pedro de Vasconcelos, que foi, à sua custa, e durante anos e anos, o melhor dos embaixadores do nosso cinema.
Já não acompanhei tão de perto a «Ana» e a «Rosa de Areia», filmes de que o Fernando Lopes poderá falar muito melhor do que eu. Nos últimos anos, com o novo-riquismo cavaquista, o ambiente era já muito desfavorável para os filmes de «poesia». O António deixou de ter apoio no I.P.C., e a «Rosa de Areia», produzida pela RTP, está ainda por estrear. O António passou por um período de solidão e de desânimo. Recentemente tinha sucedido um milagre. Um produtor suíço tinha-se apaixonado pelos seus filmes, e queria financiar o seu próximo projecto, uma adaptação de «Pedro Páramo», o maior dos romances mexicanos deste século. Era um projecto ambicioso, a filmar lá fora, com grandes meios... O António aparecia na escola de cinema contentíssimo, com uma alma nova. É um filme que nunca veremos, não me consigo conformar.
Paulo Rocha [cineasta]
Jornal JL, pág. 6, 17 de Setembro de 1991
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