sábado, setembro 24, 2005

108. FALECIMENTO - Texto de Eduardo Prado Coelho

Um autismo obstinado

Pensava-o imortal, não sei bem porquê. Talvez porque nunca o vi envelhecer. Entrou em minha casa há vinte anos – uma casa onde morei alguns meses, ali para os lados da Avenida de Roma. Uma casa que nem me chegou a ser casa, a não ser por duas ou três coisas muito nítidas que nela aconteceram. Uma delas foi o António Reis. Ele vinha do Porto, não sei se naquele dia ou no meu imaginário, e era alguém que tinha escrito uns poemas de uma extrema simplicidade, rasantes ao solo, de uma sensibilidade minimalista, a que chamara Poemas Quotidianos. O meu mérito estava em ter gostado daqueles versos; o erro seria complicá-los demasiado. Desde esse dia que me ligou ao António Reis uma enorme cumplicidade. E isso transbordou para o cinema. Para o Jaime, primeiro. E depois para o Trás-os-Montes. Nessa altura eu estava na Direcção-Geral de Acção Cultural, e o António Reis vinha ver-me quase todos os dias. Primeiro, foi que os jornais não diziam que o filme era tanto dele como da Margarida Martins Cordeiro. Eu explicava que não mandava nos jornalistas, ele queria que se fizesse qualquer coisa. Depois, porque o público não aparecia. Fizemos publicidade na televisão, arranjámos descontos para estudantes, aumentou-se a promoção, o público veio. Então, o António Reis chegava todos os dias de manhã e dizia «eles ontem riam nos momentos certos, choraram nos momentos certos, e à saída alguém disse…», e contava uma história.
Era admirável ouvir o António Reis falar dos seus filmes. A sua força está em ter vivido sempre no interior deles, numa espécie de autismo obstinado. A sua fraqueza está também nesse mesmo autismo. Mas era uma fraqueza como a das crianças que são por natureza fracas e implacáveis – por isso nos sentíamos seduzidos e comovidos quando ele nos explicava o filme que rodava incessantemente dentro da sua cabeça, circular perfeito. E ele explicava: aquele vermelho, procurámos a aldeia toda para encontrar aquela lã vermelha que ali estava certa. E aqui era preciso que o olhar se prolongasse porque a despedida era imensa. E contava, contava sempre, o seu filme infinitamente outro em si mesmo.
Se o pensava imortal, é porque sempre vi António Reis fora do tempo – isto é, dentro do seu filme. Recentemente, ele tentou filmar, já numa espécie de desespero-limite, uma «rosa de areia». As crianças gostam de brincar com a areia. O seu filme é agora uma areia mais pura. Na fronteira do ouro.

Eduardo Prado Coelho

Jornal JL, pág. 7, 17 de Setembro de 1991