domingo, dezembro 05, 2004

065. "ANA" - Crítica de Joris Ivens

TEMPO INTERIOR

Ainda não tive o diálogo que desejava com António Reis e Margarida Cordeiro, realizadores do filme «Ana».
Recordo-me do seu filme precedente, «Trás-os-Montes», uma obra inesquecível.
Vendo «Ana», vivi uma grande experiência emocional. É um filme que eleva o espírito, com uma sensibilidade, uma finura e uma concepção poética da imagem muito particular.
Toda a força do filme está na sinopse:
«Naqueles dias...
A lenda do leite na casa sombria.
Tempo interior.
Quase silêncio».
Mais do que uma lenda, é um conto, um sonho secreto que vos persegue muito tempo depois.
«Tempo interior», mas também essa dimensão cósmica que se infiltra no filme, e o «quase silêncio», é verdade, o silêncio extravasa para a sala. O silêncio natural dos gestos dos personagens adultos e infantis, dos seus olhares. A. Reis e Margarida Cordeiro recriam o tempo sem verdadeiramente se afastar da sua realidade, realidade que é sempre a verdadeira fonte de trabalho artístico, sempre muito próximo dessa fonte.
No interior da casa sombria, a luz está lá para valorizar certos lugares obscuros do espaço. Efeitos impressionantes, e não é Rembrandt, não é Latour!
Pelo contrário, no exterior as cores são gritantes: amarelo, verde, que dão toda a sua força à paisagem. Paisagem grandiosa, por vezes com um personagem que se apercebe ao longe, correndo ou andando, e que confere ao espaço a sua desmesura. Isto recorda-me um pouco a pintura clássica chinesa que situa o homem no universo. A imagem do homem ligada ao cosmos é uma das mais profundas reflexões da filosofia chinesa que diz: «O céu dá, a terra recebe, faz crescer, e o homem consuma». E considero audacioso da parte de cineastas como Reis e Cordeiro, muito próximos da realidade de hoje, por vezes próximo do documentário, introduzir esta noção cósmica.
Há proliferação de símbolos em «Ana», símbolos que são também signos, um código: a história, a mitologia com o discurso sabedor do professor. Flash-backs de 5000 anos! E Reis e Cordeiro têm a coragem de recuar no tempo e no espaço, dizendo-nos: são as mesmas, são as mesmas gentes; os mesmos movimentos da humanidade que, finalmente, têm lugar nesta casa, é o próprio ciclo da vida: as montanhas, a água, o rio, e a relação do homem com a natureza, com o animal.
Pode dizer-se que A. Reis e M. Cordeiro recriam o tempo. Por dentro, sempre pontuado pelos actos da vida quotidiana, o ritmo naturalmente lento dos olhares, dos gestos. Por exemplo, quando o filho de Ana vem à cabeceira da sua mãe morta. O momento mais emocionante é a imagem da neta de Ana, de costas, cujas mãos deslizam lentamente ao longo da parede. E Reis e Cordeiro não nos mostram o seu rosto.
Este filme exalta a vida mas fala também na morte. O odre, a jangada, a barca, outras tantas intervenções humanas ao longo dos séculos e que, no entanto, nos conduzem à ideia da morte.
O símbolo da barca, fonte de vida e de morte estabelece uma relação quase natural com a morte de Ana. Para o fim da sua vida, como fazendo um percurso ritual, Ana dirige-se para um lago, redondo, inserido na paisagem fixa e plana. É esta espécie de visão que me vem à ideia quando penso em coisas pacíficas e serenas. É com essa imagem de Ana subindo e descendo os mesmos degraus demasiado altos. O ruído dos seus tamancos soa como um destino, uma fatalidade. A minha idade avançada faz-me também sentir essa fadiga. Sinto muito bem o que se passa nos movimentos de «Ana», que diríamos lentos, mas que são, de facto, de uma extrema justeza, eficazes, precisos e medidos para economizar as suas forças.
Reis e Cordeiro utilizam o vento como elemento dramático e não como um artifício: o vento acaricia as árvores ou fustiga-as. Por exemplo, no primeiro plano do travelling, a neta de Ana corre com o vento de rajadas que em segundo plano, arrebata a imagem. É incrivelmente belo.
Gosto dos silêncios deste filme. Gosto do silêncio que invade os próprios lugares, ainda que durante muito tempo carregados com a presença dos personagens que já os deixaram.
A. Reis e M. Cordeiro tratam com um talento excepcional a memória neste filme. O vaivém entre o passado e o presente da velha Ana nunca nos é imposto como um flash-back sublinhado, mas sobrepõe-se, encaixa como na aparição da jovem vestida de branco.
O Action-République Cinéma mostra o filme de dois grandes poetas.


Joris Ivens

Jornal Diário de Notícias, de 30 de Junho de 1983.

Nota: A revista Cinema, n.º 8, págs. 13-14, Verão de 1985, publicou uma outra tradução do francês, da responsabilidade de Véronique Bobichon, deste texto de Joris Ivens. Não possuo o documento original!