177. «ANA» - Opinião de António Mega Ferreira
[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]
Um escândalo de Qualidade
A Comissão de Qualidade da Direcção-Geral de Espectáculos acaba de recusar a classificação de «filme de qualidade» ao último trabalho de António Reis e Margarida Cordeiro, «Ana» (ver entrevista e artigo de J. G. Pereira Bastos nas págs. 8 e 9). A Comissão é constituída por 11 elementos, dos quais quatro são críticos, é um realizador de cinema, um é psicólogo, um outro advogado, outro ainda escritor, mais um pintor e dois altos funcionários dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e do Ministério da Justiça.
Para abreviarmos argumentos, avancemos como tese que a recusa da Comissão de Qualidade (expressa por quatro votos contra três) é um escândalo. É-o não porque o filme seja inquestionavelmente uma obra-prima, ou porque perante ele toda a gente se tenha que curvar sem condições nem reservas.
A decisão da Comissão de Qualidade é um escândalo porque não se traduz numa simples afirmação de um gosto ou uma opção estética, antes tem força de autêntica decisão administrativa, com consequências inclusivamente no plano dos benefícios fiscais de que o filme pode vir a usufruir.
Há em Portugal, por estes dias, uma inquietante tendência para pretender afirmar autonomia e independência pelo exercício de um poder que se pretenderia «incorrupto», não manchado por outras considerações que não sejam as do livre arbítrio de cada um. Dir-se-á que se trata de uma manifestação adolescente, e em parte sê-lo-á, reacção natural num país que sofreu um processo simultâneo de iniciação colectiva e de irresponsabilização individual tão acentuado como foi o da democratização pós-25 de Abril. A verdade é que o simples facto de se tratar de uma Comissão institucional, cujas decisões são dotadas de eficácia administrativa, faz com que o juízo final não possa ser o resultado de uma qualquer pressão individual, nem uma simples soma de gostos desligados do contexto social, cultural e estético do tempo e do lugar em que vivemos. Há um efeito de instituição que tem necessariamente de pesar nas decisões da Comissão de Qualidade; e esse efeito implica que um filme não pode ser julgado (para o fim a que especificamente se destina a decisão da Comissão) exclusivamente por critérios de gosto pessoal. O mesmo efeito de instituição se encontra, por exemplo, nas páginas deste jornal: fala-se aqui, não poucas vezes, de acontecimentos ou objectos que não nos despertam esteticamente um entusiasmo especial, mas aos quais não é possível deixar de reconhecer qualidade e importância.
Teremos assim que colocar a crítica da decisão da Comissão de Qualidade em torno da seguinte questão: «Ana» é técnica, social, cultural e cinematograficamente (e, se se quiser, também moralmente) um produto inferior? A decisão da Comissão de Qualidade parece inculcar que sim. E é aí que reside o escândalo.
Há no trabalho de António Reis e de Margarida Cordeiro, de «Jaime» até «Ana», passando por «Trás-os-Montes», uma seriedade, uma honestidade, um empenhamento e um coerente e rigoroso exercício de princípios (que poderão ser esteticamente discutíveis, claro) que fazem da curta cinematografia destes dois criadores um caso absolutamente à parte, no quadro das cinematografias europeias contemporâneas. Mesmo dentro do contexto da produção cinematográfica portuguesa há, no cinema de António Reis e Margarida Cordeiro, uma forma lateral de afirmação, que poderá ser discutível nas suas implicações, mas que nem por isso deixa de assumir um lugar invulgar de consistência e densidade que tornam cada um dos seus filmes um produto de evidente qualidade técnica e profissional.
Para decidir o anátema de «Ana», quatro dos membros da Comissão de Qualidade parecem ter manifestado dúvidas quanto à pertinência de certas representações rituais e simbólicas constantes do filme. Ora, corremos de novo o risco de cair na polémica do real real e do real fílmico, que animou as artes ainda há poucas semanas, a propósito de «Amadeus», e que se julgaria já impossível de ressuscitar em plenos anos oitenta. A mim importa-me pouco que a representação de certos sinais e estruturas simbólicas estejam em «Ana» deslocadas dos seus códigos referenciais; parto do princípio de que todo o filme é em si a tradução de uma mitologia própria e que essa pressupõe, necessariamente, a criação de um universo simbólico específico, precisamente o que torna um filme não um documentário de «realidades», mas um discurso autónomo dotado de eficácia estética.
Não cabe, no espaço desta «Opinião», desenvolver muito mais estas ideias. Interessa, isso sim, insistir nas consequências previsíveis da decisão controvertida: o descrédito progressivo da Comissão de Qualidade, não só da sua composição, como da sua própria eficácia, as legítimas dúvidas quanto fundamento da sua existência. Por isso Augusto M. Seabra pode, no «Expresso», pedir a demissão dos membros da Comissão; por isso três outros membros, que por ausência não votaram, podem requerer a revisão da decisão; por isso o cineasta Paulo Rocha pode escrever o texto que nesta página se publica.
E por isso podemos legitimamente exigir, dos quatro membros que negaram a «Ana» o seu voto de qualidade, que se expliquem publicamente sobre as razões e os critérios da sua decisão. As páginas do JL estarão à disposição de todos e cada um deles.
António Mega Ferreira
Jornal da Letras, pág. 2, de 14 a 20 de Maio de 1985.
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