terça-feira, dezembro 27, 2005

128. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Luís de Pina-2

[Estreia no cinema Satélite, Lisboa - Sexta-feira, 11 de Junho de 1976]

«Trás-os-Montes: segundo tempo»

Creio que um filme poético como "Trás-os-Montes" (poesia que seja "a fisionomia com que o tempo desliza", no verso profundo de Carlos Queirós) exigirá sobretudo uma visão pura, sem compromissos deformadores. As imagens de António Reis e Margarida Cordeiro têm essa carga de significado, de sentido, de mistério, que o próprio real contém e, nessa linha, é preciso saber ver completamente o que está diante dos olhos, saber ver dentro ou para lá da realidade directa que os autores vão filmando. Infelizmente, o espectador tem-se habituado ao artifício da história, da narrativa, do diálogo explicativo, da legenda auxiliadora, como se o real filmado não bastasse. E aqui, o que os realizadores nos pedem desde o início é que saibamos ver, "ver com os olhos da alma", como as crianças do filme, cuja visão, para mim, é o lado mais belo e mais puro do seu trabalho.
Como dizia ontem, é preciso ver este filme como quem lê versos, não só versos sentimentais ou românticos, mas versos autênticos, seculares, com "raízes, como a fumaça" (a citação é de Vinícios de Moraes), versos de vida e sociedade, de amor e memória, de dignidade e orgulho, de terra e sangue, de paixão e distância. Filme que se constrói sedimentarmente, pouco a pouco, é preciso saboreá-lo em cada imagem e em cada cena, em cada enquadramento e em cada sequência. Não há fio de enredo, senão o que brota da inspiração poética, não há agrado que não seja o saborear cada momento isolado do filme como se de todo o filme se tratasse. Uma pedra de Trás-os-Montes é de toda a terra da província, um rosto de velho ou de menino são todos os rostos, uma ideia proposta são todas as ideias que Trás-os-Montes pensa.
Neste sentido – e aqui Jean Rouch tem razão – o filme é único, como "Amarcord" é único. Não estou a comparar Fellini aos cineastas portugueses, mas apenas a ligar uma certa intenção comum de vivificar a memória, neste caso mais correntemente humanista do que no mestre italiano de Ramini. Em "Amarcord" não há enredo; há apenas cinema e, por isto, com ele o filme português é tão puro, tão novo, tão original na nossa cinematografia: nada se explica, tudo se vê, tudo se sente, tudo se compreende, tudo leva a amar e, daí, a procurar salvar a maravilha que é a portuguesíssima Trás-os-Montes, terra de reis, fidalgos, servos e santos, paisagem remota de sonhos, lendas, pedras e neve, áustera e antiga, falando como nenhuma outra um português que já existia quando não existia Portugal.
Continuo na minha e, como eu, todos os portugueses com um mínimo de sensibilidade e cultura: "Trás-os-Montes" não é nenhuma "abjecção" nem prejudica qualquer imagem séria da província, pelo contrário, mostra a pureza, a verdade, o encanto, o problema, o passado e o futuro de uma terra que não gosta de mentira e que as imagens não atraiçoam.
De resto, eu perguntaria: acaso as gentes da Nazaré, no fim dos anos 20, e já depois do 28 de Maio, protestaram contra a visão documental e rude de Leitão de Barros ao rodar ali "Maria do Mar"; ou acaso as gentes da Gardunha protestaram por terem sido mostradas sem enleios nos "Lobos", do Rino Lupo; ou mais ainda: acaso as gentes transmontanas protestaram contra essa obra tão sincera e tão verdadeiramente nordestina que é "Festa, Trabalho e Pão em Grijó de Parada", do Manuel Costa e Silva?
Temos que eliminar da nossa terra os resquícios de um certo gosto acatitado e estilizado, de bilhete postal, em tudo contrário à verdade das coisas. Neste sentido, "Trás-os-Montes" e, muito bem, é a antítese dos "Portugal de Hoje". Por isso eu recordo aqui as palavras do meu amigo Manuel Gama a propósito de um desses filmes artificiais e artificiosos que enganavam a realidade portuguesa, a verdade das nossas coisas. Dizia ele que tais filmes eram como que "croissants de pastelaria", nada se assemelhando "ao negro pão da terra que consumimos, fruto do trigo e do joio da nossa pobre messe". E tinha razão. "Trás-os-Montes" é a prova.

Luís de Pina

Jornal O Dia, pág. 7, de 16 de Junho de 1976