quinta-feira, outubro 07, 2004

040. "JAIME" - Entrevista por João César Monteiro - 4 (Actualizado)

(Conclusão)

UM FILME A COR SOBRE CORES

J.C.M. – Outro aspecto que, no filme, me parece extremamente interessante, é todo o seu jogo de cromatismos.
A.R. – Precisamente, naquela sequência com um aparente minuete de Telemann depois do patético aparente que é o choro da viúva, rompe, nuns planos muito curtos com azuis, uma certa graciosidade, embora ameaçada, de minuete...
J.C.M. – Desculpa a interrupção, gostaria de introduzir um parêntesis: quando, no plano da viúva, se pressente que ela chegou ao limite das suas forças anímicas e vai desabar a crise, tu cortas imediatamente o plano...
A.R. – Repeti esse plano seis vezes, mas é muito difícil pedir a uma pessoa de 71 anos que, aos trinta e tal, com uma escadaria de filhos, se viu privada do marido, chamasse por ele como se estivesse nos campos.
J.C.M. – São muito estranhas as tremuras que ela tem.
A.R. – Que ela tem, mas nós estávamos a desenterrar o marido. Por vezes, ela vinha gritar por ele para a meio dos campos. Foi uma perda muito grande e, passados tantos anos, a gente lembrar-se de fazer um filme sobre o marido e bater-lhe à porta com toda a aparelhagem às costas, hás-de concordar que é uma violência muito grande. E nunca digam que, no filme, esse aspecto é documental, porque eu zango-me. Não tem nada a ver com um documentário, nem biográfico, nem nada. É uma espécie de memória e de imaginação.
J.C.M. – Voltando à cor, peguemos onde tu a matas: na sequência do monocromatismo a sépia.
A.R. – A razão da sequência a sépia anda perto da «verdade» se se considerar inúmeras determinantes... Vejamos, ao acaso, algumas: roupas castanhas dos internados; espaço arquitectónico quase metafísico; ausência de cor vital na enfermaria; quase irrealidade do «mundo» em que na alegria de quem se situa e identifica, Jaime viveu; uma oxidação evidente a nobreza de certos tons velhos do cinema mudo; sem cor, ainda, num filme a cor sobre cores; antinomia para a sequência de E eu a rir-me... e o cromatismo fauve de Jaime, uma intenção de gravura a água-forte; uma sequência-metáfora, em «flash-back», reportando-se a 1938; um raccord de tom, fundamental, para o retrato inicial do artista, no ano de internamento, e para a sua primeira frase Ninguém Só Eu, a filtragem de um realismo imediato e patético; uma redução que se torna expansiva; uma homogeneização psico-social; uma poética e uma dignificação...

NÃO TER DE EXPLICAR NADA, NA ESPERANÇA

J.C.M. – Gostaria de te pedir, se isso não te causa grande dano, que falasses um pouco acerca das relações estruturais entre as imagens e os sons do filme.
A.R. – É-me difícil sintetizar em palavras esta estrutura. Os estruturalistas, mais neutros, mais metódicos, serão bem mais capazes disso... Tu sabes que, num filme que não é filmado síncrono, fica a porta aberta para a imaginação mais desvairada ou para a sonorização mais imbecil. Não há complementaridade na relação imagem/som do Jaime. Não há mesmo um único pleonasmo: nem sequer quando Armstrong pronuncia white table e aparece uma mesa branca (há mesas por onde passou muito cotovelo em campo). A propósito de imaginação livre e de como evitar a sonorização imbecil, gostaria que fosse bem meditada a integração da St. James Enfermary na 2.ª sequência do filme e na passagem para a 3.ª. Sabes que, além da música, diálogos, ruídos, utilizamos, como matéria sonora, grandes bosques de silêncio. É tão intenso e carregado, esse silêncio com timbres, como o Stockhausen mais alucinante.
A estrutura imagem/som dinamiza uma transformação permanente. Leva sempre mais além (ou aquém) o momento ou a significação imediata do plano, da cena e de todo o filme. Exemplificando: o último desenho do Jaime, regresso à matriz, a morte, termina com um travelling avante submerso em fundido, martelado com o tantã de Stockhausen. Ora bem: o plano seguinte é o de um relógio no frontão do hospital, que marca 1 hora da noite (dado biográfico, a hora a que Jaime realmente morreu). Ouve-se uma pancada de relógio, mas, a seguir, no psicodrama do encontro-desencontro no coradouro, na despedida impossível Jaime/Mulher, as pancadas de 2 até 8, são badaladas de sino de aldeia, anunciando Trindades, dobrar a finados... Ao 9.º som, a badalada é de novo uma pancada de relógio, são 9 horas, e estamos numa barbearia onde se trabalha com afã e onde um ex-companheiro de Jaime, ao cair dessa 9.ª pancada-badalada, deixa cair a cabeça para trás, em repouso, e evoca o artista. Sem especulação, mas porque falaste de estruturas (e tanta natureza elas são!), há que referir o decorrer da marcação cénica e da acção e a sua dialéctica com o som: à 2.ª pancada, um internado (Jaime) alija 2 canados de café, à 3.ª recolhe um levíssimo dente-de-leão; à 4.ª vai desaparecer, para sempre, por detrás dos lençóis (fronteira transparente e opaca da vida e da morte), no decorrer da 5.ª, 6.ª, 7.ª e 8.ª, outra internada (como se fora a Mulher) entra em campo, oferece, eleva e fica desamparada com o cesto, as primícias da terra, do amor... Esta durée da poética e mística rural, representada por internados, tem vagas sucessivas de significações, quanto a mim só possível pela dialéctica imagem/som, entredevorando-se, transformando-se. É abusivo continuar a dissertar sobre «isto» e o encanto foi fazer, descobrir, desesperar, não ter de explicar nada, na esperança que os outros sentiriam, ouviriam.

PASSAVAM OS DIAS A ESCREVER

J.C.M. – Há também uma relação permanente entre elementos escritos, entre uma grafia, de sugestão plástica, e uma fonética, de sugestão musical. No fundo, isto acaba por ser tautológico: é ainda uma relação entre imagens e sons.
A.R. – Se a obra plástica do Jaime deu razão para uma dinâmica da imagem, a própria escrita dele, deu razão para outra espécie de dinâmica: ou para sonhar com as frases que ele deixou escritas ou, até como fenómeno de ilusão que, por si, é outra plástica psíquica do Jaime. Exigia também um tratamento cinematográfico. Exigia que estivesse em relação com o próprio Jaime e com o que isso significa. Há uma sequência que tem cinco tipos de escrita diferentes e seguidas.
J.C.M. – Mas há mais: a linha do gráfico hospitalar, por exemplo, joga com a linha do monte, apesar de serem linhas adversas: uma é partida, cheia de arestas, a outra é ondulada, cheia de contornos suaves.
A.R. – Exactamente. Isso é importantíssimo. O Jaime fazia os seus gráficos plásticos. O hospital, também para determinar cientificamente o seu estado de saúde. E havia os gráficos da natureza onde Jaime se tinha inspirado e que, para além de Jaime, sempre existiram. Há sempre uma relação entre tudo, mesmo naquela sequência das cartas escritas, o sobrescrito é um barco do Zêzere que encosta francamente a um cais, mas, simultaneamente, é um raccord necessário, para a plástica do Jaime entrar, pela primeira vez, no filme. Precisei desse elemento para encaixar o rio mas, ao mesmo tempo também me serviu de trampolim para as artes plásticas. O grafismo está em ambas as coisas. E é a escrita de Jaime que determina isso. São coisas aparentemente mais subtis, mas não são nada subtis. E o Jaime não dissociava a palavra escrita da imagem desenhada. Passava os dias a escrever.

NÓS NÃO ESTAMOS EM LEILÃO

J.C.M. – Sei que estás a preparar um filme sobre o Nordeste transmontano, que precisamente se chama Nordeste. Podes dizer qualquer coisinha sobre isso?
A.R. – Não posso garantir que seja um filme decente, como o Jaime. O que posso dizer é que estamos empenhados numa luta idêntica e considero um dever histórico – até por respeito para com todos os Nordestes que existem ainda no mundo – chegar a tempo. Perder valores de imaginação, valores poéticos, lúdicos, arquitectónicos, de fauna e de flora, perdermos esse Nordeste, é como perdermos, para sempre, espécies da natureza e, um dia, talvez soframos horrivelmente, ao imaginá-las em álbum, se existirem. Todos ficaremos profundamente pobres. Não me interessaria nada que Portugal tivesse o maior produto nacional bruto do mundo se, amanhã, a autenticidade de províncias como o Nordeste – são digo autenticidade sob o ponto de vista etnográfico ou regionalista – digo, naquilo que representa de valor humano, na civilização, e de valor geográfico, na terra, se perdesse. E não o digo levianamente, porque desde 57 que contacto com o Nordeste. É horrível salvar um capitel românico para pôr num museu. Um capitel era um elemento de uma coluna, a coluna pertencia a um pórtico, o pórtico pertencia a uma catedral, mas isso, com todas as suas instituições, alienações e sonhos, ainda fazia parte de um templo habitado por pessoas. Neste momento em que tudo se homogeneíza, no péssimo sentido, considero gravíssimo que não façamos tudo o que está ao nosso alcance para impedir essa destruição, ainda que seja apenas através de um filme.
J.C.M. – Queres fazer o filme em 16 m/m ou em 35 m/m?
A.R. – A força plástica e telúrica da província é tão grande que o 35 m/m é que nos servia.
J.C.M. – Som directo?
A.R. – Não. O Nordeste tem muito som que já não é o som do Nordeste. Queremos recriar o som, de acordo com o som que o Nordeste teve ou deveria ter. Dir-me-ás que é falsear o real, mas, no nosso sonho, não pretendemos atingir uma verdade absoluta...
J.C.M. – Interrompo-te só para encaixar a frase de Novalis: «Quanto mais poético mais verdadeiro». É a minha única convicção profunda.
A.R. - ... É uma espécie de respeito pela pedra que se está a esboroar, mas se temos o sentido da pedra é porque lhe demos muita cabeçada. E da madeira, e das pessoas que inventaram poemas, e das pessoas que semeiam, e das pessoas que vêem os filhos partir, que vêem os seus rios sem peixes, que matam e morrem. Apaixonadamente. Não imagino, a frio, o tempo que o filme possa ter. Determinar «a priori» o tempo de um filme parece-me ridículo. O tempo de um filme é interior e não tem nada a ver com o tempo psicológico de projecção. Um bocado de pão com azeitonas pode ser muito mais saboroso que o mais rico «menu». Um «hai-kai» pode ter três versos e ser mais poético do que uma longa epopeia. Infelizmente, temos todos colaborado nesse embuste. Creio que a erosão do Nordeste, não é só uma erosão de vento e sol e terra que a enxurrada leva, é uma erosão muito mais total, mas começa-se a provar que, por debaixo dessa erosão, há muita coisa que não é erudida e, por cima, muita ave que voa, muito homem que caminha e sonha. O Nordeste está em leilão. Está tudo em leilão, e há coisas que não se podem deixar leiloar, até, para «salvação» dos que vão comprar essas peças para pôr nas suas casas. Nós não estamos em leilão. A nossa responsabilidade não está em leilão. Não ponho isto como lema para toda a gente, mas para mim, é fundamental. Como pode ser fundamental fazer um admirável cinema nos meios urbanos. O que é preciso é descobrir os Nordestes de Lisboa. Também existem cá. Não gostaria de falar do que considero ambicioso porque, às vezes, descrever as coisas rouba-lhes emoção, mas não é só isso: os oportunistas são muitos e os aventureiros ainda mais e, como diz num provérbio Dogon, o estrangeiro só vê aquilo que sabe. E realmente não se pode julgar por aquilo que se sabe. É impúdico e vergonhoso o que estão a fazer – não digo ao povo – à etnografia. Aliás, a etnografia só interessa como recolha, não me interessa um programa etnográfico em relação ao Nordeste. Se for uma antropologia de ficção, então está certo, embora pareça paradoxal.
J.C.M. – Referir-se-á o teu verbo bem irado aos atentados que alguns mentecaptos televisivos têm perpetrado contra este país, ou estarás, pelo contrário, mal acordado de um sonho funesto?
A.R. – Refiro-me aos atentados televisivos, entre outras coisas. Uma coisa as pessoas sabem: é quando são ofendidas. Se já não o sabem, se nós achamos que sabemos mais alguma coisa do que elas, temos a obrigação de nos sentirmos ofendidos... Ou então que venha mesmo o raio, a erosão que leve tudo.
J.C.M. – Deus te ouça, e há-de ouvir, e, nessa certeza, proponho que esta entrevista comece aqui. Todavia, para que possa começar é preciso que acabe. Voltemos, pois, ao Jaime para que acabe bem. No final, enquadras o postigo gradeado, em cruz, da cela de Jaime e cortas para uma fotografia de Jaime, que irá ser o último plano do filme, tal como o primeiro era, também, uma fotografia de Jaime. Tudo o que se passou, passou-se, afinal, entre duas fotografias, dois instantâneos da vida de um homem.
A.R. – Era importante pôr o retrato dele, no fim.
Ele escreveu: Animais como retratos de príncipes Olhos nas mesmas arcas...

(FIM)

Entrevista de João César Monteiro a António Reis, publicada no Cinéfilo, n.º 29, págs. 23-32, de 20 de Abril de 1974, a propósito da estreia de "Jaime".