sexta-feira, julho 22, 2005

092. A COERÊNCIA DA SOLIDÃO

[Poesia]

Há, na poesia portuguesa, alguns casos de poetas cuja obra se reduz a um livro ou pouco mais, e que apesar disso constitui um ponto de referência: Nuno Guimarães, Cristovam de Pavia, por exemplo; mas também, por exemplo, António Reis. Se, nos dois primeiros casos, a morte precoce foi responsável por essa escassez, já no último caso o abandono (público, pelo menos) da actividade poética resultou de uma opção consciente do poeta – compreensível, dado o seu empenho total no cinema, em que se realizou de uma forma muito mais completa.
Publicou António Reis em 1967 os "Poemas Quotidianos", que recolhe dois livros anteriores com o mesmo título, de 1957 e 1960. É uma poesia dissonante do que na época se apreciava: o seu intimismo, a inspiração individualista do poema, a escolha deliberada de uma linguagem elementar que os versos curtos, as estrofes rarefeitas de dois ou três versos, e raramente mais do que isso, a ausência do lirismo de pompa e circunstância que dava o tom "à poesia de combate", são os traços essenciais de uma escrita original, em que se prenuncia a reacção à retórica e ao discursivismo que será a tónica da jovem poesia da década de 60.
Se pensarmos no "companheirismo" então reinante, soa quase como um manifesto, melhor, uma poética, o que Reis escreve: "Eu só quero ouvir os meus passos/nas salas vazias".
Esta atenção ao ser, bem como a um mundo substantivo, e por isso mais objectivo e mais real do que aquele que surge em muita da poesia e da estética realista se reivindicava, é um sinal distintivo da margem em que se inscrevem os "poemas quotidianos"; não surpreendendo, então, o passo que levou António Reis da margem ao marginal quando, na sua passagem para o cinema, vai buscar como tema do seu primeiro filme o louco pintor Jaime. Há, por outro lado, muito de visual na opção objectivista de Reis. A articulação entre a palavra e o olhar é quase fusional: e digo quase porque, se tivesse sido plena, o poeta não teria cedido lugar ao cineasta.
Íntimo, subtil, discreto, como era a própria pessoa que comovidamente lembro, o poema nada faz para se impor. Aí, porém, é que reside a sua terrível força:
"Sei/ao chegar a casa/qual de nós/voltou primeiro do emprego/Tu/se o ar é fresco/eu/se deixo de respirar/subitamente".

Nuno Júdice


Jornal Público, pág. 27, 12 de Setembro de 1991