quinta-feira, setembro 16, 2004

026. O ÚLTIMO POEMA

ROSA DE AREIA
(Filme)
Segunda, TV2, 23h10

De todos os criadores cinematográficos portugueses, é lugar-comum apontar-se Oliveira como o mais radical na individualidade irredutível de uma obra que procurou e procura reinventar o cinema moldando-o a uma visão pessoal. Não é verdade. Se há que encontrar - e porque haveria? - um artista a quem seja justo apontar a tal individualidade irredutível, esse será, sem margem para dúvidas António Reis (1927-1991), primeiro sozinho, depois co-assinando os filmes com Margarida Cordeiro - o derradeiro dos quais foi Rosa da Areia que, estreado no Fórum do Festival de Berlim de 1989, nunca seria comercialmente visível entre nós. Esta apresentação na RTP corresponde, portanto, e para todos os efeitos, a uma estreia em Portugal.
António Reis era um poeta - e o seu cinema para o lugar da poesia se foi sempre dirigindo. Para o bem e para o mal. Para o bem, se considerarmos que trabalhou os materiais fílmicos com uma liberdade estética inigualável, propondo-nos conjugações de uma sedução sem nome. Para o mal, se quisermos que o cinema se pratique nos domínios da inteligibilidade - e os caminhos de Reis foi no sentido da progressiva opacidade.
Tomemos Rosa da Areia - e digamos, à partida, que é um filme onde se percebe nada, onde é estulto buscar um fio narrativo, uma história, um saber. Mas, ao mesmo tempo, é um objecto de uma beleza desmedida, onde entrevemos qualquer coisas para a qual ainda não encontrámos palavras – para a qual suspeitamos mesmo que as palavras são desperdício. Qualquer coisa que se nos impõe pelo deslumbramento – e nos confunde pelo labirinto. Qualquer coisa que não saberemos dizer sobre que fala, mas sentimos que está entregue à autonomia audiovisual, no limiar de um cinema-outro. Qualquer coisa que nos diz nada mas nos agarra por motivos inesperados, conjugações, surpresas, encruzilhadas.
Qualquer coisa arrogante - também - e, nesse sentido, magistral será um adjectivo adequado para o qualificar.
É Rosa da Areia um grande filme? Não faço a menor ideia - de tal maneira escapa a todos os padrões, escolas, modelos, bitolas. Visto num grande «écran» de uma sala escura - e, jamais, num televisor - devo dizer que me fascina, incomoda, maravilha e enfada, sucessivamente e, às vezes, tudo ao mesmo tempo. O mais irritante é que, apanhado pela estupidez da morte, não foi permitido a António Reis prosseguir o seu caminho - depurar a poesia fílmica que andou perseguindo. Fica-nos a sensação de que Rosa de Areia é um objecto de meio de jornada. Imperscrutável, intrigantemente diverso.

Jorge Leitão Ramos

Jornal Expresso, Cartaz, pág. 24, 28 de Janeiro de 1995