segunda-feira, setembro 12, 2005

101. FALECIMENTO - Texto de José Vaz Pereira

Morreu ontem, aos 64 anos, o cineasta português António Reis.
O cineasta era casado com Margarida Cordeiro, e na sua carreira de realizador
contam-se filmes como "Jaime", "Ana" e "Rosa de Areia", que assinou em parceria
com a cineasta Margarida Cordeiro. O corpo de António Reis encontra-se na Igreja
de São Mamede, em Lisboa, onde hoje se celebra missa, às 14 e 45, seguindo o
funeral para o cemitério de Benfica.


António Reis morre aos 64 anos

SUBIR ÀS MONTANHAS

António Reis era um homem diferente e desprovido da «mise-en-scène» que por vezes os realizadores utilizam na vida real para o filme não parar. Abrupto mas sempre gentil, directo e intenso gostava das suas obras que realizava em conjunto com Margarida Martins Cordeiro com amor de pai. Esta força instintiva disfarçava um poeta e um homem determinado. Para tentar que os seus filmes chegassem ao público através de um caminho que se revelava sempre doloroso e desgastante, António Reis, o autodidacta feito cineasta, «batia-se como um leão».
Ele gosta de olhar as coisas, os homens, as montanhas, os campos e as nuvens de outra maneira. «Trás-os-Montes» seguido depois por longas-metragens como «Ana» e «Rosa de Areia» (este até agora nunca exibido no circuito de distribuição) são etapas diferentes de uma extraordinária jornada. Num cinema tantas vezes virado para a literatura ou para a construção literária das suas intrigas, os filmes de António Reis (em colaboração com Margarida Martins Cordeiro) eram o regresso a qualquer coisa de essencial e íntimo que não sabíamos explicar. Uma obra como «Ana» está ao mesmo tempo dentro de nós e para lá de nós.
Estes filmes belos tinham sempre uma gestação difícil. António Reis contou-me que passara horrores para pôr de pé «Rosa de Areia», lutando com imensas dificuldades e debatendo-se com todo o tipo de dificuldades. Mas, eterno optimista torturado, animava-se quando, ao mesmo tempo, falava do prazer que o filme lhe dera, dos cenários que escolhera, das personagens que descobrira, das lendas que reencontrava. «Rosa de Areia» era uma obra mais elaborada do que «Trás-os-Montes” ou «Ana» e pela primeira vez descobria-se aí uma presença urbana. Mas, quanto a inspiração poética, os seus filmes tem a mesma forte unidade. Portugal passou ao lado de um artista, com algo de mágico e que dera sinal de presença com o extraordinário «Jaime» (1974).
Foi uma estreia notável. Trata-se do retrato de um homem, Jaime, internado aos 38 anos no Hospital Miguel Bombarda do Porto e que, três anos antes da sua morte em 1965 começou a escrever e a pintar. O filme só encontra na interioridade a sua liberdade, não vemos a vida de Jaime antes o seu sonho e angústia e recriação do seu universo pictórico e do ambiente em que a sua sensibilidade encontrava inesperadas formas de expressão.
O cineclube do Porto foi a escola de António Reis, a fonte do seu desmedido e nem sempre compreendido amor pelo cinema. Tido como um homem que apreciava a via experimental, era mestre em compreender a natureza e a sua influência nos ciclos de vida e da cultura dos homens. Gostava de nos convidar a olhar de uma maneira especial «Trás-os-Montes» que surpreendeu toda a gente, tirava o filme dos estúdios e voltava à montanha, à nuvem, ao rio, à voz do vento, a uma lenda contada a uma lareira. Quando muitas vezes o cinema português vivia de pequenos ódios pequenas ideologias que, dez anos depois, não teriam sentido nenhum «Trás-os-Montes» trazia-nos de volta outra mundo respiração outra maneira de olhar as coisas [sic]. Se era preciso ficar na floresta ficávamos na floresta, se era preciso sonhar nas montanhas subíamos às montanhas, se era preciso descer ao vale para ouvir uma canção ao longe lá encetávamos essa jornada. Um panteísmo transfigurado e tranfigurador, um eterno retorno às raízes. «Ana» que, como sempre, realizou em colaboração com Margarida Martins Cordeiro, é o mais puro dos filmes. Apetece saltar da cadeira para pará-lo, agarrar certos momentos que ora são poderosos ora subtis mas que deixam uma sensação de beleza que já não é deste mundo. Mas «you can’t stop the movie», não se pode parar o filme, em que as nuvens deslizam no céu e a próxima imagem já não é a mesma imagem. «Ana» é o mundo a mover não o mundo a parar. Adeus, António, teremos sempre os filmes.

José Vaz Pereira

Jornal Diário Popular, pág. 7, 11 de Setembro de 1991