sexta-feira, outubro 01, 2004

037. "JAIME" - Entrevista por João César Monteiro - 2

(Continuação)

BASTA AMAR UM PEQUENO CILINDRO

J.C.M. – Agora, passemos de chofre ao Jaime. O que é que te interessou na escolha do motivo?
A.R. – Acima de tudo, interessou-me a vida de um homem e, sem lamechice, parece-me que só poderia interessar outras pessoas se pudéssemos converter esteticamente a vida desse homem, dado que ele, por si, já não se podia defender, ou atacar, ou até nem lhe interessaria. Não sei. Se me perguntares porquê, posso dizer que me identifico com o conflito dele e que esse conflito se identifica praticamente com todos os que estão na condição de Jaime. Posso também dizer que procurei fazer um filme, humildemente, isto é: que, ao menos, fosse um modo de salvaguardar, através do registo em película, os desenho que ele deixou e considero geniais. Se fosse, pois, apenas um puro trabalho de arqueologia do cinema, eu já teria ficado feliz, dado que soube que grande parte da obra dele desapareceu.
J.C.M. – Eu não sou um entendido em artes plásticas, mas pareceu-me indiscutível que estamos perante um universo pictórico de uma extrema riqueza.
A.R. – Eu creio que basta amar um pequeno cilindro da Mesopotâmia para «sentir» que o Jaime é um artista de génio. Mas, quem vibra com esses selos de argila antiquíssimos vibra com a pintura de Lascaux, Altamira, Giotto, Rousseau, Léger, Séraphine Louis... O bestiário de Jaime, com o seu aurinhacense e madalenense, ao mesmo tempo que um desfilar de arquétipos, é um dos mais singulares da História da Arte. E a sua estética «fauve» ou expressionista, se não foi contemporânea desses movimentos europeus, também nada lhes deve. O seu tempo histórico e psicológico outro era. Era outro o seu espaço de gruta, subterrâneo ou sideral, com nuvens onde viajavam, sonhavam e sofriam, 1000 homens dentro.
J.C.M. – Temos, portanto, por um lado, o teu interesse pelas artes plásticas...
A.R. – Sempre me interessei profundamente, mas nunca consegui ver o Jaime pintor separado do homem, e até se me pôs um problema: é que o Jaime começou a pintar aos 65 anos e, até aí, há uma vida para trás e não pude precisar as causas que determinaram aquela pintura, mas ao estudar mais de perto a sua vida, o lugar onde nasceu, o lugar onde esteve hospitalizado, verifiquei que a sua pintura era profundamente determinada por esses factores. E como as obras de arte são pintadas por alguém (um traço é feito sob um pressão emocional), interessava-me saber o que está por detrás do pintor. Talvez assim encontrasse um sentido mais profundo. Não estou a fazer confusão. Isto não quer dizer que quem não conheça nada da vida do Jaime não possa gostar dos seus trabalhos ou avaliá-los, mas se é verdade que um símbolo plástico representa, abstracto ou concreto, a luta por essa representação é encontrar a sua poesia ou dialéctica. O que se tentou foi mais uma dialéctica da pintura do Jaime, com todas as suas implicações poéticas, dramáticas, biográficas, etc. É por isso que acho injusto que não se considere Jaime um filme de fundo, um filme de ficção. Não é uma história, mas é um filme onde tudo tem importância. Até o seu próprio aspecto descascado, sem preciosismo. Parecia-me um atentado à condução de um trabalho deste género apoiá-lo em preciosismos. Não quero desculpar a falta de brilho do filme, a falta de retoques, mas houve uma espécie de pudor que comandou a própria concepção estética. Eu também trabalhei com esferográficas.

DAR-LHE A DIGNIDADE DE UMA ESTÁTUA

J.C.M. – Essa espécie de pudor que tu, muito justamente, não dissocias de uma concepção estética, parece-me que tem ressonâncias muito profundas em todo o movimento global do filme e começa por ser muito evidente, logo no início, quando a câmara se situa, face ao pátio do hospício, em obediência a uma reflexão de ordem moral que se poderia postular em termos de procura do lugar exacto – o lugar que, simultaneamente, destrói a noção de fronteira, da mesma forma que destrói o próprio rectângulo do enquadramento e prepara, se assim se pode dizer, a série de jogos circulares, sem começo nem fim, em que todo o espaço fílmico se articula.
A.R. – Podia dizer-se que se espreita para qualquer sítio, assombrado com o que se vê, ou para não ser visto, e não se pode mostrar o espaço todo. É uma selecção visual, não há espraiamento. O compromisso de a câmara ter sido usada à mão, e representando, em certa medida, o desmunido do olho humano, pareceu-nos a maneira mais certa de chegar a uma certa crueza de observação. A própria perspectiva nos feria, a profundidade de campo, tudo o que fosse fazer passagens ou modelações. Há ali uma espécie de trabalho em madeira, no plano, que o reduz à essencialidade. Evidentemente que se podia ter feito a sequência em continuidade, mas tudo isso implicava muita palha no meio, e eu não podia dirigir os doentes da maneira como os dirigi, conseguindo a própria sublimação de um oligofrénico, dando-lhe a dignidade de uma estátua de Henry Moore, que a doença, às vezes, não permite e repugna muita gente, mas que, a mim, como ser humano, me toca profundamente, pela fatalidade da doença dele e pela maravilha que é.
J.C.M. – Outra coisa que me impressionou particularmente no filme é o facto de a doença nunca estar presente.
A.R. – Não há doentes, no filme. Não há normais nem anormais.
J.C.M. – O único referente são os uniformes. No plano da barbearia, por exemplo, os gestos de trabalho, entre os barbeiros profissionais e os internados, são idênticos, e só distinguimos a situação real de cada um, porque uns estão fardados e os outros não.
A.R. – Nesse friso, até queria chamar a atenção para o facto de poderes encontrar figuras das mais admiráveis, desde figuras que poderiam ser de grande estatuária românica, barroca, a homens do dia-a-dia. De resto, se uma preocupação tive, e poderia ser um princípio moral, foi indeterminar e destruir a fronteira da normalidade e da anormalidade, sem «parti-pris», mas pela razão simples de me estar no sangue e na inteligência, até porque estou convencido que grande parte dos anormais estão cá fora e muitos normais, hospitalizados. Classifico mesmo essa divisão, em extremo, como racista. É um dos grandes problemas do nosso tempo, em qualquer parte do mundo, e tentar destruir esse preconceito era, para mim, muito importante. Devíamos, por certo, pensar profundamente no lugar social privilegiado que os ditos doentes mentais ocupavam nas comunidades estudadas pelos antropólogos. Trabalhei entre eles com grande alegria. Foram admiráveis em tudo o que lhes pedi e em tudo o que ajudaram.

SÃO OS HOMENS COM NÚMERO

J.C.M. – E não houve, por vezes, uma certa estranheza e curiosidade malsã por parte da equipa de filmagens?
A.R. – Talvez só estranheza, e da primeira vez, no primeiro contacto, mas depois todos se sentiram como se estivessem entre amigos.
J.C.M. – No final da panorâmica, na barbearia, falaste em friso e, realmente, as figuras são dispostas em friso.
A.R. – Ainda é uma metáfora do Jaime a pintar, cuja obsessão e fascinação ouvimos na banda sonora. E as figuras que lá estão ainda são as figuras obscuras que o Jaime dizia pintar. Na obra expressionista dele há um contraponto entre a pintura animalista e o humano, as partes animalistas são os arquétipos do campo, de qualquer época, e aquelas figuras expressionistas são não só os seus companheiros de hospital, mas os companheiros de qualquer quartel, de um hospital que não seja de alienados, de uma cadeia, de um orfanato, etc.
São, digamos, os homens com número. O friso que aparece no final da panorâmica é o homem submetido ao ordenador. Ordenador da época, ou não. A construção do filme entra e sai dos desenhos. Quer dizer: não há desenhos de um lado e vida real do outro. Entra-se e sai-se livremente. Faz tudo parte de uma unidade que é o filme. Na realização há uma estilização das figuras de Jaime e, nas figuras de Jaime, pela estilização que se operou, o real hospitalar acaba também por ser reflectido.
Exemplificando: em toda a sequência inicial a sépia, todas aquelas figuras foram dirigidas, não para serem bonitas – embora, para mim, fosse importante consegui-lo – mas para serem dirigidas com o rigor com que um realizador dirige os seus actores profissionais. Não seria tanto por exigência dos raccords ou do ritmo do filme, mas pela exigência da ascese que as figuras têm na nobreza da atitude, ascese plástica que o Jaime também lhes conferiu. Talvez por isso, acabei por conseguir criar uma atmosfera geral, entre arte plástica e o real, através dessa interferência mútua. As próprias figuras ficam tanto mais humanas quanto mais escultóricas.

O GRANDE TRAMPOLIM DO FILME

J.C.M. – Isso é fabuloso na sequência que abre com aquela figura, envolta num manto colorido, em primeiro plano. Dir-se-ia que aquele gesto gravíssimo de erguer o braço é que é comanda tudo, introduzindo no filme uma nova dimensão, na qual tu dás o motor e ela parece comandar a acção.
A.R. – Essa figura é «Deus». Quanto a mim, é das sequências mais complexas do filme. Começa por ser uma sequência metafísica. Está implicada na sequência anterior. Aquela porta e aquele jogo de luzes e sombras com o vértice é, realmente, uma morte alusiva a Jaime. É se quisermos, o «Além». É também teatro, e tem uma explicação. Também pode ser uma actividade lúdica dos internados. Do próprio realizador. É uma sequência que, ainda hoje, me dá que pensar, mas é, sobretudo, a possibilidade de entrar na transfiguração que, a seguir, se opera no filme. É o grande trampolim do filme, uma vez que começa com muita gravidade, banaliza-se, na medida em que descobrimos o balneário, mas se súbito, compreendemos que é o túmulo de Julio de Medicis porque todo aquele alabastro se transforma em túmulo secular. É uma morte cheia de dignidade.
J.C.M. – Tu passas do exterior para o interior com um travelling à mão que acaba no fundo da banheira e faz raccord...
A.R. - ...com o barco. Essa sequência é, por assim dizer, uma descida ao Lethos, aquele cãozinho que aparece é um enterro do Jaime e, ao mesmo tempo, a entrada no hospital. Se bem te lembras, há o rio de cartas que faz contraponto com esse rio e raccorda com os desenhos. É também uma introdução aos desenhos.
J.C.M. – Portanto, o fundo da banheira liga com o fundo do barco.
A.R. – E quando se volta novamente ao cãozinho, há uma água lodosa, semelhante à do castanho do fundo da banheira, entre outras coisas. Tão importantes como os raccords dinâmicos do filme, são os raccords cromáticos que, ao mesmo tempo, servem a dinâmica que o filme exige e a dinâmica que, de igual modo, é exigida pelas artes plásticas. Esses raccords tanto são de parentesco como de contrariedade. Ás vezes, parece que o filme se descose, mas não. Nesses momentos, estão a equacionar-se outros valores. É o caso de sequência das botinhas. De repente, estamos na Assíria, com todos aqueles pés que são uma representação plástica da Mesopotâmia.
J.C.M. – Isso também tem que ver com pontuações puramente musicais.
A.R. – O que me fascinou foi quando senti que os meios se provocavam permanentemente uns aos outros, sem que, com isso, se autonomizassem. O filme fugiu-nos sempre. O Jaime também parecia fugir.
J.C.M. – Como todo aquele que salta no vazio e atravessa várias mortes.
A.R. – Realmente, ele morre diversas vezes. Numa legenda, diz que morreu 8 vezes. Noutros escritos diz que morreu quase 100. É como nós que morremos um pedaço todos os dias. Ele próprio sentia que ali morria muitas vezes. Podemos analisar isso do ponto de vista do delírio ou do diagnóstico da doença (o Jaime era um esquizofrénico paranóico), mas na nossa vida também dizemos isso vezes sem conta. Morremos e renascemos, como naquele travelling final. É o Renascimento, Assis, Giotto, Fra Angélico, é uma água lustral de prado, de flores, é, de novo, a entrada nas urtigas que também dão flores, da parte final.
J.C.M. – A mim lembrou-me os grandes líricos do cinema soviético. Talvez Dovjenko...
A.R. – Só conheço A Tempestade na Ásia de Poudovkine, o Ivan e o Alexandre Nevsky de Eisenstein. E uma coisa chamada Os Alegres Foliões de Alexandroff. Não vi quase nada.
J.C.M. – Eu também não, é secundário, mas o que me impressionou foi a justeza da velocidade do travelling. É que, de repente, é todo o espaço a abrir-se, a plenos pulmões, a tudo, com uma energia incomum por estas ocidentais praias...
A.R. – Mas se bem te lembrares, estivemos quase sempre num espaço neutro, num espaço plástico, num espaço arquitectónico fechado, num espaço, por vezes obsessivo.

(Continua)

Entrevista de João César Monteiro a António Reis, publicada no Cinéfilo, n.º 29, págs. 23-32, de 20 de Abril de 1974, a propósito da estreia de "Jaime".