125. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Nuno Bragança
[Antestreia em Bragança (1 de Maio de 1976) e em Miranda do Douro (2 de Maio)]
"Trás-os-Montes" visto por Nuno Bragança
Nuno Bragança, o autor da «Noite e o Riso» que, a par do «Maina Mendes» de Maria Velho da Costa marca uma data na ficção portuguesa acedeu a prestar-nos o seu depoimento sobre o filme «Trás-os-Montes» de António Reis e Margarida Cordeiro. Nuno Bragança que assistiu à antestreia do filme em terras mirandesas, escreve:
Este filme de António Reis e Margarida Cordeiro é poeticamente muito rico, e por isso a compreensão dos seus valores exige a abertura e a disponibilidade que são necessárias para se estender a linguagem que mergulha até às raízes da vida. Quero com isto dizer que o filme só é difícil para quem o complicar com interpretações superficiais.
O António Reis disse-me: «Isto afinal é um filme sobre erosão». Penso que ele queria referir exactamente o que significa a palavra erosão ou seja, um desgaste progressivo devido a agentes externos ou internos. E isso permite-me referir uma das coisas que mais me impressionaram nesta obra.
Neste Trás-os-Montes temos um vislumbre de comunidades cujos alicerces assentam em tempos recuadíssimos. Simultaneamente, assinala-se que factores sócio-económicos ameaçam destruir toda uma cultura, porque a emigração – para a cidade ou para o estrangeiro – nunca permitirá que culturas assim sobrevivam por se actualizarem. Ao ver o filme lembrei-me várias vezes da central atómica que a Espanha está instalando quase junto à fronteira transmontana, e que ameaça poluir a área do Norte de Portugal suficientemente vasta para nos criar problemas graves. Ora bem: eu penso que as culturas ainda ligadas ao seus substrato histórico são como as florestas ou os rios: se a industrialização as eliminar por não lhes permitir que se actualizem respeitando as verdades profundas que encerram, é a própria vida da humanidade que corre perigo. E se hoje, em meios culturais como o nordeste português, se verifica uma reacção generalizada contra certas tentativas apressadas de baptismo político, isso é devido à lamentável falta de atenção com que os missionários do progresso agiram, recentemente. E quando digo «atenção» refiro-me, mais do que à elementar delicadeza na abordagem, ao facto de que os dinamizadores culturais ou políticos devem começar por estender a cultura valiosa e multissecular existente em tais comunidades. E devem fazê-lo não só para fins de política local ou regional, mas mesmo nacional. Quando vi, neste filme, a panorâmica magnífica que nos apresenta transmontanos sentados no Domus de Bragança onde, em tempos antigos, os homens-bons tinham assento, eu pensei que devia ser possível obter o parecer de pessoas como essas em tudo o que fosse de grande importância para a vida colectiva. Porque os sofisticados habitantes da capital que habitualmente governam as nações estão demasiadamente longe de certas realidades que só as camadas populares aprenderam a ter em conta e que, portanto, só elas conhecem bem. Ao dizer isto tenho em mente sobretudo as dificuldades próprias de decisões revolucionárias que visam o progresso. É que o progresso autêntico nunca pode ter lugar por imposição de uma minoria ditatorial e portanto, assaz ignorante. Parece-me que toda a filosofia do poder popular parte do princípio de que as chamadas cúpulas revolucionárias só podem levar a cabo os fins que se propõem atingir se o fizerem segundo a linha que a prática e a reflexão das bases forem aconselhando. Ora as bases são feitas de pessoas concretas e não de abstracções intelectuais.
Este filme é também uma lição de respeito atento pela humanidade. E porque o António Reis e Margarida Cordeiro não se ficam em intenções e promessas, ele foi fazer uma antestreia para o povo que constitui a substância do seu filme, e por isso esta antestreia foi também um acto exemplar.
Nuno Bragança
Jornal Diário de Lisboa, pág. 14, de 11 de Maio de 1976
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