175. «ANA» - Crítica de Luís de Pina
[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]
«Ana», um novo filme português
Numa das suas sínteses mais felizes, André Bazin considerava o estilo de Vittorio de Sica como uma sensibilidade e o de Rosselini como um olhar. À distância portuguesa de 40 anos, tanto nos separam de «Sciuscià» e de «Roma, Cidade Aberta», a obra de António Reis e Margarida Cordeiro funde a sensibilidade na pureza da sua criação visceralmente poética.
Num tempo de erotismo, o filme é casto; num tempo de palavra, o filme é visual; num tempo de imobilidade, o filme retoma a pintura em movimento - moving picture - que, partindo da fixidez do plano, descobre a vibração interior profunda, a montagem invisível. Sobretudo, num tempo de matéria, o tom e a forma sugerem a religiosidade, o rito, a celebração, o gesto litúrgico, a comunhão dos seres e da terra sob o céu.
«Naqueles dias» - cito de cor, portanto mal, as palavras iniciais, o frontispício sonoro do filme - «o ar era mais puro e as estrelas estavam mais perto». Não é esta evocação temporal o modo evangélico de lançar ao vento o verbo, a palavra? A palavra que neste filme é rarefeita, essencial, puríssima, sempre pausada, lenta e repetida como uma litania, a um ritmo que muito longe se encontra do dia-a-dia habitual.
OUTRO CINEMA
Há quatro anos, quando vi pela primeira vez o filme, ainda sem as misturas finais, dizia-me António Reis que a sua intenção e a de Margarida Cordeiro era restituir à imagem toda a sua força expressiva, numa altura em que o cinema moderno procurava sobretudo valorizar a palavra dentro do espaço da encenação.
«Ana», por isso mesmo, é uma obra predominantemente visual, em que as palavras não servem para acompanhar (como é costume acontecer nos filmes) a acção, mas para a introduzir ou para a comentar, por vezes intensamente, como na longa sequência fixa em que o Arquitecto Octávio Lixa Filgueiras austera e claramente fala das jangadas do Douro e, por mor dessa evocação, refere as barcas antigas que nas religiões primitivas transportavam as almas dos mortos sobre as águas, sugestão que, aliás, domina todo o filme com subtil proposta poética.
Por vezes, parece estarmos diante de um filme mudo, do tempo dos grandes nórdicos ou dos grandes russos, tão intensa é a necessidade de contemplação criada pelos autores nas suas imagens. O diálogo, o comentário, repito, são formas de acompanhamento verbal que apenas vão introduzir o pleno significado da sequência visual a que respeitam.
Trata-se, como em pintura, de contemplar, de absorver, de penetrar todo o espaço gráfico, não apenas na sua normal carga plástica, mas na sua carga afectiva, poética, interior, mesmo o tecido visual de que se compõe, os requintes da composição, a cor, a presença dos adereços, frutos, móveis, espelhos, fumos, fatos, colchas.
Poucas vezes um filme terá dado tanta razão às justas palavras de Carlos Queirós quando dizia «Ver só com os olhos/É fácil e vão/Por dentro das coisas/É que as coisas são». É preciso, de facto, ver para além da superfície, atentar nos silêncios, acompanhar os gestos, as cores e as formas do enquadramento (admiráveis, de resto, as tintas de flamengos e holandeses na escura cozinha transmontana onde o fogo crepita) entender a serena beleza de alguns momentos puramente poéticos, religiosos no seu sentido mais profundo, como a imagem da mangedoura ligada à criança que precisa de leite. Ou sentir a passagem do tempo, como no momento em que Alexandre brinca com o mercúrio e a menina vem junto deles, os dois afagados pelas cortinas que o vento faz ondular. Ou sentir os passeios da mãe Ana pelos campos, rosto feito paisagem, entre o céu e a terra, sobretudo nesse caminhar matinal e fresco ao longo da relva orvalhada.
A MÃE, A TERRA
A ÁGUA, O SANGUE
Na sua recusa de uma narrativa tradicional contada, «Ana» documenta apenas a ficção de um lugar e da sua gente, descontínuo, fragmentado, frágil, intenso na contemplação necessária, mergulhado na vibração do tempo que decorre.
Mas quem é e o que significa esta mulher? Que sentido tem os seus gestos, os seus passeios, as suas falas graves, o seu grito de morte «Miranda! Miranda!», nome de animal e de burgo velhos?
Nestas imagens rituais, nesta celebração da vida em termos de uma verdadeira liturgia cinematográfica, a mãe Ana é a força criadora, o sangue, a água, a terra, a conjugação vital que descobre o horizonte do mundo em lenta panorâmica e anuncia a morte que vem ao pôr-do-sol diante de um charco de água parada. À sua volta as pequenas e insondáveis marcas da vida, a visão inexplicável da terra, os factos aparentemente desconexos e sempre carregados com a sua própria ambiguidade, os gestos e os passos banais, aparentemente sem sentido, dos humanos, a sua festa.
«Ana» é a essência, palavra completa como uma amêndoa, princípio, meio e fim em três simples letras. Palavra-chave, também, enigma e solução. Nome de mulher. Nome de filme. «Ana», de António Reis e Margarida Cordeiro.
Luís de Pina
Jornal O Dia, pág. 21, de 13 de Maio de 1985.
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