085. "ROSA DE AREIA" - Texto de João Lopes a propósito da antestreia na Cinemateca
[Antestreia na Cinemateca, 7 de Outubro de 1989]
contracampo
Cinema português à espera
A estreia de Recordações da Casa Amarela poucas semanas decorridas sobre a sua distinção com um Leão de Prata no Festival de Veneza constitui um fenómeno raro no nosso mercado cinematográfico. Aqui está, na verdade, um filme que, para além das leituras que possa suscitar, dos entusiasmos e demarcações que não vai deixar de desencadear, consegue vencer a mais perene maldição do cinema português: chega ao confronto com o público quando a sua actualidade é um facto palpável.
Assim se anula, pelo menos num caso, essa ideia algo patética segundo a qual os filmes portugueses não servem senão para angariar distinções ou prestígio no estrangeiro – e, concretamente, nos festivais de cinema estrangeiros – (sobre) vivendo condenados ao desconhecimento por parte do próprio público para o qual, acreditamos, foram pensados. Basta recordar o caso dramaticamente exemplar de O Bobo, de José Álvaro de Morais, premiado com o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno de 1987 e, até hoje comercialmente inédito no nosso país.
A regra tem sido, na verdade, esta: os filmes portugueses dificilmente chegam às salas portuguesas. As explicações para tão insólito estado de coisas são, certamente, muitas e variadas, podendo cada caso particular justificar um rol de argumentos mais ou menos lamentados, por vezes à beira do lamentável. Parece difícil negar, no entanto, que o seu prolongamento não pode ser explicado apenas pelo «desinteresse» dos filmes (mesmo quando não podemos deixar de reconhecer que alguns são de difícil relação com qualquer público) ou pelo «boicote» de distribuidores e exibidores (mesmo se tais entidades nem sempre têm mostrado verdadeiro interesse em repensar os modos de promoção do cinema português). Para além de tudo isso e, quase sempre através disso tudo, permanece um dos chamados problemas de fundo: a quase completa dissociação entre a produção e a difusão.
A circunstância de os filmes portugueses serem produzidos, em grande parte, com dinheiro estatais gerou «mecanismos de inércia» (esperemos que o paradoxo da expressão seja, pelo menos, sugestivo) que não têm sido fáceis de anular. Dir-se-ia que a eventual energia investida na fabricação do objecto-filme poucas vezes se traduz nesse outro território – o do acesso aos espectadores – dele separado, pela lógica económica, mas não separável se pensarmos, muito simplesmente, porventura candidamente, que um filme apenas cumpre o seu destino quando chega a... algum público.
O papel da crítica?
Num contexto assim definido, o papel da crítica é necessariamente vulnerável, sobretudo quando são os próprios discursos críticos a favorecer as condições da sua vulnerabilidade. Na pior das hipóteses, isso tem-se traduzido, em casos passados, na proliferação de um paternalismo acomodado e sem (des)culpa: do seu ponto de vista, competiria à crítica compensar (triste missão) as falhas e limites da conjuntura em que os filmes são divulgados ou esquecidos. De acordo com tal estratégia, que pouco mais é do que uma patética confissão de impotência discursiva, seria indispensável garantir no espaço específico da crítica as regras do proteccionismo que, noutros campos, os filmes não encontram.
Ora, que discurso pode manter-se a um nível crítico ignorando que o seu trabalho depende, justamente, de uma relação nunca decidida nem estabilizada com a actualidade verificável, possível ou desejável? Ou ainda: que discurso pode ambicionar possuir um estatuto crítico se menosprezar o facto de a verdade se jogar sempre, mas sempre, numa certa e segura distância – que é, de uma só vez, atenção e liberdade – em relação à actualidade em que se inscreve?
Neste momento, uma maneira de dizer essa distância pode ser, por exemplo, a evocação de um dos filmes portugueses que permanecem inéditos no seu próprio país: Rosa da Areia, de Margarida Cordeiro e António Reis. Não para o lançar contra algum outro filme (mesmo não ocultando que o seu radicalismo desafia todo o cinema), nem sequer para o consagrar em nome do seu reconhecimento noutras paragens mais acolhedoras (mesmo não ignorando que esse reconhecimento é um facto verificável). Apenas para sublinhar que o próprio discurso crítico não pode deixar de se sentir reconhecido pelo facto de a lógica do seu labor se descobrir energicamente desafiada perante a singularidade das apostas formais de Rosa da Areia.
Apresentado no passado sábado, numa sessão efectuada na sala da Cinemateca, Rosa da Areia estabelece óbvias relações com os títulos anteriores dos seus autores: Trás-os-Montes e Ana. Ao mesmo tempo, porém, há nele uma sede de absoluto que o transforma num objecto digno do combate que decide travar: trata-se, afinal, de filmar uma errância das memórias e dos símbolos, do histórico e do mitológico, que compromete não apenas a verdade das nossas heranças culturais, mas, no limite do indizível, toda a ordem cósmica.
Rosa da Areia não serve de modelo para o que quer que seja, a começar pelo cinema português. Os que se julgam fadados para promover, por exemplo, a «qualidade» de Oliveira contra a «popularidade» de Fonseca e Costa (ou esta contra aquela) escamoteiam a simples evidência de que a vitalidade – artística & comercial – de um qualquer cinema passa sempre pela diversidade das suas frentes. Não precisamos de padrões universais, mas de um universo de muitos padrões.
Rosa da Areia é apenas (e não é pouco) uma experiência capaz de interrogar drasticamente as nossas atitudes correntes como espectadores e, nessa medida, um objecto que só aceita o que vejamos a partir de um compromisso total do nosso olhar e da leitura do mundo que nele transportamos. Que seja um filme invisível, isto é, à espera de se cumprir como filme, eis a tragédia muito portuguesa de que todos participamos, atravessando silêncios violentos como um grito.
João Lopes
Jornal Expresso, Cartaz, pág. 5, 14 de Outubro de 1989
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