sexta-feira, junho 29, 2007

159. «JAIME» - Crítica de José Manuel Costa

Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema,
António Reis e Margarida Cordeiro: a poesia da terra
Faro, 15 de Novembro de 1997.


JAIME / 1974

Foi contundente a estreia de António Reis no trabalho de realização. Não tendo sido caso único de uma grande primeira obra no cinema português – um cinema em que, no fim de contas, os mais interessantes realizadores o foram desde as suas primeiras obras – Jaime marcou de facto, tanto pela sua beleza como pela sua contundência. A obra inicial de Reis irrompeu no panorama da nossa cinematografia, como gesto único de solidez e força instintiva. Marcou pelo extremo de modernidade e pelo extremo de originalidade. Inaugurou uma liberdade única no tratamento das formas e uma combinação única de ascese e precisão do discurso. Foi, nesse sentido, uma entrada directa para o primeiro plano na nossa produção, e foi também, curiosamente, um caso de aposta colectiva, por via da defesa acérrima de que dele fez grande parte da geração de 60 – (uma geração que nessa altura ainda demonstrava um espírito de "corpo", como ficou provado nos muitos textos de defesa apaixonada, entre os quais destacaria como peça fulcral, o diálogo com João César Monteiro publicado no "Cinéfilo" de Abril de 1974, na semana mesma do "25").

Oriundo do Porto, auto-formado no cineclube local, autor de dois livros de poemas (Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos) colaborador da obra colectiva Auto de Floripes (uma produção independente do cineclube do Porto), assistente no Acto de Primavera, responsável pelos diálogos de Mudar de Vida, Reis chegou à realização munido de três trunfos maiores: cultura sólida em domínios afins (cultura plástica, musical, poética); disponibilidade e capacidade para se servir cinematograficamente dela como se tal estivesse a ser feito pela primeira vez; amor profundo pela cultura popular e pelos homens que a veiculam, e da qual procurou sistematicamente arrancar os dados mais antigos, depurando-a não só da aculturação contemporânea como, em alguns casos, de todo o invólucro pós-renascentista que a ela se colou.

Em Jaime, António Reis abordou de imediato essa cultura com a total liberdade do ficcionista. Preocupando-se também, sempre, com a função de registo (foi ele o teorizador do projecto do "Museu da Imagem e do Som", lançado pelo Centro Português de Cinema em 1974, e ao qual ficariam ligados Trás-os-Montes, Máscaras de Noémia Delgado e Argozelo de Fernando Matos Silva), o seu programa de trabalho excedeu logo aí essa função, estipulando que não pode haver registo profundo e durador se o acto de registar não for igualmente, com a mesma força, um acto criador, logo, transformador.

Como os impressionistas, Reis conduziu o realismo à consciência da própria matéria do meio utilizado (neste caso, planos, espaço, tempo, cor, silêncios e sons...). Como os expressionistas, construiu as suas imagens a partir de uma marcada visão interior (a rigorosa arquitectura dos seus planos, o princípio declaradamente construtor que os organiza). Mas, como ele próprio disse a propósito do lado fauve e expressionista dos desenhos de Jaime, "se a sua estética não foi contemporânea desses movimentos europeus, também nada lhes deve. O seu tempo histórico outro era (é)". Ou seja e dizendo de outro modo: não é por qualquer retorno às vanguardas nem por qualquer associação a mais modernas práticas cinematográficas que podemos encontrar o verdadeiro contexto do cinema de Reis. O lugar de Reis no cinema nuclear (experimentador das formas) mas, ao mesmo tempo, "externo". O seu universo não pode ser entendido fora das relações com a natureza e essa cultura antiga (o próprio autor veio a falar do neolítico a propósito do projecto de Trás-os-Montes) e a sua criação cinematográfica, a invenção de cada plano, releva também da Ciência (apeteceria dizer da Cosmologia, lembrando, por exemplo, o paralelo entre gráfico hospitalar e a curva dos montes em Jaime, ou a fabulosa história do eclipse em Ana).

Jaime quem foi e como o abordou António Reis? Nasceu com o século (1900), casou, foi internado com esquizofrénico no Hospital Miguel Bombarda com a idade de 38 anos e morreu três décadas depois. Em 1965 (ou seja, três anos apenas antes da sua morte) começou a pintar, com lápis e esferográfica, ao mesmo tempo que escrevia abundantemente em cadernos vários. Grande parte (a maior, talvez) da sua originalíssima criação plástica foi perdida. Da que ficou, acrescentada aos textos encontrados, ao local do internamento e ao contacto ainda possível com a viúva (então com 71 anos), fez António Reis o seu filme. À maneira de Straub na obra sobre Bach, não se trata portanto de um documentário sobre uma vida já então inexistente nem – muito menos – de uma "reconstituição" dessa vida. O que Reis fez foi filmar e trabalhar sobre os materiais e figuras concretas que existiam no tempo da rodagem do filme e exclusivamente sobre isso. A evocação biográfica e a outra (humana, psicológica) surge por outros caminhos, ou seja, pelo próprio trabalho (que nesse sentido é documentário e é ficção sobre esses materiais.

Jaime–filme, começa (como, aliás, acaba) com a fotografia do internado. E uma frase dele: "Ninguém, só eu". De imediato, passamos à visão actual do pátio do hospital e aos homens que o habitam ("não há doentes no filme – não há normais nem anormais", dirá Reis), visto a sépia como se por um óculo. Em silêncio. Depois, a câmara recua e ascende, do pátio ao céu, e aí um súbito ruído (avião?) corta o espaço, abrindo-o para outra dimensão: do céu, em plongé, abre-se-nos a visão mais larga do pátio, entrando a cor e a música (Armstrong). Entramos então no interior do hospital, descarnado, vazio, sem corpos ou com eles, fechados, nas respectivas camas. E, de novo, voltamos ao exterior: o volume circular do edifício e as gretas, verticais, por onde lhes entra luz. Depois será a cena alegórica do "mágico" junto da fonte, ao centro do pátio (simbologia da vida e da criação) e nova entrada para dentro, até ao plano da banheira corroída pelo tempo (interior, vazio e morte). Mas já a banda sonora enche esse vazio com outro elemento natural, o vento que, desse mergulho mortal nos arranca para fora, para a natureza (o barco preso, o curso de água, as plantas), donde, por sua vez, vimos depois a entrar, finalmente, no universo pictórico de Jaime. Daí para a frente é então essa a dialéctica organizadora das imagens e dos sons: o confronto entre as figuras desenhadas por Jaime e os sucessivos espaços e sons da sua habitação, real e imaginária; o espaço a duas dimensões dos desenhos, contra a profundidade da imagem entre elas; a intervenção dessas figuras imaginárias – animalescas ou demoníacas – a povoar o espaço natural.

Em Jaime não há assim uma "história" nem uma progressão linear da narrativa. Há um movimento através de lugares e objectos, espaço e tempo, que é de destruição sistemática de uns planos por outros, ou de destruição sistemática do "plano" em que as coisas são vistas. O raccord da imagem – ou na imagem/som – é sempre de corte sucessivo para outra dimensão, comprimindo ou expandindo a dimensão imediatamente anterior. Por meio dessa ruptura sistemática corre um discurso em espiral baseado na oposição das matérias fílmicas (cromatismos, espaço visual e espaço sonoro), e por via disso, um sucessivo desdobramento de áreas e volumes – uma sucessão de esferas de progressiva interioridade, que, ao mesmo tempo, são de progressiva libertação. E é este duplo movimento (para a frente e para dentro, para trás e para fora) que serve a António Reis para, em última análise, fazer explodir o mundo interior de Jaime ("ninguém, só eu") e a sua comunhão secreta com a vastidão dos espaços naturais.

Tal como o furo que a certa altura é feito no corpo do animal, tal como a história das arcas dentro da casa vazia (volumes abrindo-se para outros volumes dentro deles) o filme vai ao âmago da solidão de Jaime e nele descobre a grandeza de uma imensa liberdade.

Convidando à leitura microscópica (ao nível do plano e do raccord), não deixa portanto de oferecer uma leitura "macro" onde passa o cerne do seu tema. É um filme sobre o homem, um filme sobre a arte, um filme sobre a criação, e um trabalho concreto, material, minucioso e programático, sobre o cinema. O manifesto de um conceito próprio de mise-en-scène.

José Manuel Costa

in Textos CP, Pasta 56, 399-400. Genérico e análise

Folha da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema para a homenagem e retrospectiva intitulada António Reis e Margarida Cordeiro: a poesia da terra, levada a cabo pelo Cineclube de Faro. "Jaime" foi exibido em Faro no dia 15 de Novembro de 1997. A mesma folha serviu para o ciclo da Cinemateca "A Primeira Vez", tendo "Jaime" sido exibido no dia 22 de Dezembro de 2000.

Este texto tem por base o que foi publicado em: Vários autores, "Cinema Novo Português 1960-1974", p. 128-129,  Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1985.