quarta-feira, setembro 14, 2005

103. FALECIMENTO - Texto de Augusto M. Seabra

Comentário

No rasto do cometa

Em 1976, um cometa atravessou o cinema português, então em céu particularmente escuro. Chamava-se "Trás-os-Montes" e os autores eram António Reis e Margarida Cordeiro.
O tempo subsequente ao 25 de Abril, tinha sido o da "descoberta do povo", em perspectiva ideológica-militante ou etnográfica. A segunda dava mesmo origem a um vasto projecto em que o filme se integrou: Museu da Imagem e Som. Contudo, não é sem reservas que a caução etnográfica se aplica a "Trás-os-Montes"; a descoberta de um particular território cinematográfico não produzia uma sensação de reconhecimento mas a estranheza perante um objecto que se diria vindo não se sabe de onde.
Já em "Jaime", uma média-metragem anterior (formalmente assinada só por Reis), a visibilidade do objecto escapava às categorias racionalizáveis do conhecimento; Jaime, o pintor, estava em "des-razão" ("doente mental" como se diz), e na ausência de uma lógica racional recriava pictoricamente o universo.
Em "Trás-os-Montes", que restará o seu mais belo filme, como depois em "Ana" e "Rosa de Areia", as transfigurações do tempo e do espaço fazem com que o espectador se sentisse fascinado e desamparado, solicitado a um caminho de direcção desconhecida – um estado onírico (como no belíssimo plano de "Ana" em que se ouve um poema de Rilke enquanto a criança dorme), em que se reencontram sensações primordiais, em que fisicamente se volta ao contacto com a água ou com o sangue, se fica banhado na luz em que não se toca, mas se sente na pele. Para "entrar" nesses filmes (porque de um convite à viagem se tratava) era preciso primeiro esquecer, deixar-se hipnotizar para depois reaprender.
"Aprender", termo que recorda outra face de Reis, a do pedagogo. Na Escola de Cinema, a sua presença foi a mais marcante para alguns dos que agora são novos realizadores no cinema português. Não era modelo passível de reprodução, mas referência. Mesmo quando a "entrada" se relevava difícil ("Rosa de Areia" sobretudo, o mais problemático dos seus filmes), havia uma promessa de beleza, quantas vezes fulgurante. Era isso, retomar as imagens e os sons para os sentir, aprender a experiência da beleza ou a alucinação.

Augusto M. Seabra

Jornal Público, pág. 27, Quinta-feira, 12 de Setembro de 1991.

NOTA: Na mesma página do Público, Nuno Júdice escreveu A Coerência da Solidão.