sexta-feira, setembro 03, 2004

009. "TRÁS-OS-MONTES" nos Cahiers du Cinéma (Conclusão)

ANTÓNIO REIS / MARGARIDA CORDEIRO - ENTREVISTA

Serge Daney
Como é que te ocorreu a ideia do filme?
António Reis
Já disse atrás que a Margarida nasceu em Trás-os-Montes. Eu nasci numa província sem força, sem beleza, sem expressão, já apagada, a 6 km do Porto. Daí o meu desejo interior de renascer noutro lugar. E a primeira vez que fui a Trás-os-Montes, com um amigo arquitecto, senti que renascia ali. Portanto, conhecia a província há alguns anos e, ao trabalhar com a Margarida, e indo lá muitas vezes, disse para comigo que seria bom fazer um filme naquela região, porque tudo confluía num sentido cinematográfico. De tal maneira que, quando começámos a filmar, foi como se muitas tomadas de plano estivessem feitas há muito tempo. O que não quer dizer que não planificámos as coisas, simplesmente tratava-se de uma planificação flexível. Por exemplo, em numerosas cenas é muito difícil distinguir o que foi filmado em directo do que não o foi. A dialéctica entre estas duas posições estéticas foi para nós um inferno. Mas pensamos que conseguimos fazer, não uma síntese, mas uma confrontação de contrários. Mesmo em directo tínhamos necessidade de toda a velocidade e de toda a surpresa, mas, por outro lado, depurámos o que era parasitário, o que não tinha sentido ou era populismo gratuito. E, para isto, necessitávamos de um olhar cirúrgico.
Serge Daney
Tive a sensação de que, durante toda a primeira parte (a das crianças), utilizavas a ficção para progressivamente dar informações mais despidas, mais próximas daquilo que se espera de um documentário.
António Reis
Mas quando a mãe conta a história da Branca Flor, estamos na ficção ou no documentário? Estamos em ambos. É frequente, numa aldeia, que um acontecimento integre a ficção. O que é surpreendente é que, se nos limitamos a estar por lá, apenas vemos a poeira dourada, os animais na fonte, etc. Mas se pudermos passar de uma casa a outra, depois atravessar uma ribeira, depois passar por uma porta, aí as coisas tornam-se de tal maneira complexas que já não podes falar unicamente de ficção e de documentário. Nessa casa, podes ouvir aquela mãe contar a história da Branca Flor enquando trabalha. E as crianças da Idade Média são como a Branca Flor em imagens. O que se compreende nestas aldeias portuguesas é que é errado separar a cultura milenária, as civilizações que vieram depois e a vida quotidiana de hoje. É justamente aí, nessa recusa de separar, que encontro um elemento progressista e revolucionário. Porque penso que as massas, aí, saberão assimilar, dum ponto de vista crítico, formas de vida que não ficam a dever nada à cidade. Porque aquelas gentes não estão dispostas a ser sempre perdedoras. Ao verem os filhos que regressam da Europa, começam a saber que isso não compensa. Eles constroem uma casa «ao lado» das outras, encerram-se nela e os pais pensam: «o meu filho enlouqueceu!». E daí resulta o desacordo que os velhos sentem em relação aos seus próprios filhos. Sabem muito bem que possuem uma riqueza e que são vítimas de um genocídio. É por isso que, nesses momentos, podem decidir: vamos cortar todos os fornecimentos de alimentos a Lisboa. Não se trata de uma posição reaccionária, o que eles desejam é que seja reconhecida a importância e validade das suas formas de fazer e de pensar.
Para voltar ao que disseste: há realmente uma tensão do filme. Essa tensão é o lírico, sempre ameaçado. Mesmo quando as crianças brincam no ribeiro, descobrem a morte através da truta congelada. A grande casa poeirenta, ou os mortos, ou a criança que se diverte com o pião (aquela que vai à mina), é sempre um mundo ameaçado. Creio que o filme está sempre em metamorfose. A parte dita «final» deve agir como boomerang: é necessário que os espectadores sejam compensados pelo espaço e tempo líricos da primeira parte para suportar o que se segue. Quando o ferreiro lamenta que as pessoas deixem a aldeia, é justamente às crianças mutiladas e aos mortos das guerras coloniais que isso se refere, são eles. Os que vão para Lisboa, para a Europa, para os bairros degradados, para as fábricas, etc. Esta é a razão por que tratámos essas crianças com tanta intensidade. Se vais a Trás-os-Montes, verás, elas são assim, não há naturalismo, são ainda um pouco como anjos.
Serge Daney
Tem-se também o sentimento de que são elas que fazem a ligação com o passado. Os adultos passam como que para segundo plano. Aparecem através da voz off, e não de discursos ao vivo.
António Reis
Porque ali não há adultos. A voz off que tu ouves, um pouco violenta, um pouco oprimida, é a voz de um personagem que se vê por um breve instante no filme. É um filho de mineiro, um quadro. O seu pai esteve cinquenta anos a trabalhar na mina. A voz desse homem está traumatizada. Fala da antiga comunidade de mineiros que eram antigos camponeses. No nosso filme, nunca falamos das comunidades de aldeias, mas deve sentir-se que elas existem. Dançam, caminham juntas no escuro. A voz off faz contraponto à vida dos mineiros como o assobio do comboio faz contraponto à música de Pergolese, que se ouve por um momento. Há sempre um cruzamento, uma dialéctica do som com a imagem, que me interessa muito mais que todas essas histórias de raccords, de elipses e outras regras dos manuais de cinema.
Serge Daney
Num momento do filme citas um texto de Kafka que diz que as pessoas estão longe da Capital, logo, da Lei, que procuram adivinhá-la mas não o conseguem, porque a Lei é possuída por um pequeno número de pessoas, etc. Será que podemos considerar que é uma analogia da situação histórica de Trás-os-Montes em relação a Lisboa?
António Reis
Sim. Traduzimos o texto de Kafka no subdialecto e, repentinamente, o texto tornou-se muito gutural, muito expressivo, impregnado de uma força extraordinária. Eles têm uma palavra maravilhosa para designar a maneira como os nobres manipulam a Lei em seu proveito: «baratím». Porque as leis da comunidade, essas, são flexíveis, são transformadas pelo devir histórico. São, é claro, leis orais, não são feitas de uma vez por todas, são flexíveis. E é por serem assim flexíveis que foram liquidadas pelas Leis escritas. Num dia, é um pastor que leva todas as ovelhas a pastar, noutro dia, é outro pastor. Há uma espécie de comunismo primitivo nessas regiões. E sente-se que, por vezes, eles estão mais perto do futuro do que as pessoas da cidade. Por exemplo, se em Lisboa falta a água vinte e quatro horas, é a nevrose colectiva. Veja-se como um camponês, na dureza da sua vida, enfrenta a neve, o fogo, o calor, etc. Com que resistência. Mesmo quando alguns camponeses foram presos pela PIDE, conseguiram resistir. Porquê? E quantos companheiros não conheci no Porto, que falavam muito e muito alto, e depois quando estiveram presos… Não quero dizer que os camponeses são mais corajosos e os outros frouxos. Mas, por exemplo, por que é que, quando os camponeses do Baixo Alentejo foram presos, tiveram uma resistência que as pessoas da cidade não tinham?
Serge Daney
Sente-se que o teu filme é feito de blocos imagem-som em relação aos quais recusas qualquer espécie de batota…
António Reis
Fizemos o som síncrono, evidentemente. Como dizes, organizámos blocos, como se fosse possível ter som sinfónico. São unidades que, de facto, vão por vezes repercutir-se mais longe. Dou-te um exemplo: quando a velha de negro vem dizer à criança que se magoou: não chores que vou cantar-te «Galandun» (um canto da Idade Média), há uma voz que diz: «Os dançarinos que se levantem, que se levantem…». E ela está já em vias de memorizar o que perdeu, e vemos então esbatidos os homens que dançam muito perto, e depois muito longe, como num postal. Deixamos que seja o espectador a dizer: um postal! Porque, na verdade, jamais os camponeses dançaram assim. Isto é o que nós imaginamos actualmente. Mas atenção: é preciso esperar até ao fim do filme para perceber o verdadeiro significado desse plano. Porque depois, vendo o velho que olha, poderíamos crer que olha os dançarinos, mas isso não é verdade. São desilusões sucessivas. As pessoas dizem frequentemente que o ritmo do filme é demasiado lento. Isto porque é necessário esperar pelo fim do filme para dar significado a determinadas coisas. E a forma como os diferentes blocos se dialectizam, para nós, é muito importante. O que nos deixou muito aborrecidos foi termos feito a montagem a preto e a branco, e não termos tido tempo suficiente para trabalhar a cor. Trabalhar doze messes sobre uma mesa de montagem a montar o preto e branco um filme que deveríamos ver a cores!
Serge Daney
A quem foi mostrado o filme? Que reacções provocou?
António Reis
Antes de mais, mostrámo-lo em antestreia aos camponeses que filmaram connosco. De um modo geral, gostaram do filme, reagiram muito bem, nomeadamente às «conotações». Recebemos algumas críticas negativas, mas elas provinham de reaccionários como os que se encontram em Lisboa e no Porto. Reprovavam a ausência da religião cristã, não termos mostrado as barragens, a cozinha tradicional, a pobreza, etc. Quiseram mesmo queimar o filme e destruir os negativos. Mas foi uma reacção muito restrita, proveniente de pessoas que conheço e que passam a vida nos cafés. O importante, para nós eram os camponeses...
Serge Daney
Mas, justamente, como pode um filme contribuir para ajudar esses camponeses, que estão, para além do mais, tão separados no cinema?
António Reis
É claro que há problemas de linguagem cinematográfica. Eles não estão na posse dessa linguagem. Mas existem elementos que são muito importantes na sua vida quotidiana, coisas que reenviam ao teatro da Idade Média. Vivem num espaço, tanto nas suas casas como na natureza, que é já cinematográfico. Estou certo que, se eles estudassem cinema, se tornariam cineastas. Um camponês disse-me um dia: «Como? Vais para Lisboa sem nunca ter visto a luz que vai de tal quilómetro a tal quilómetro? Como é que podes?» Dificilmente encontro em Lisboa pessoas que me falam da luz sobre as paredes ou sobre as ruas. Quando os camponeses viram o filme, reconheceram coisas que amavam e que lhes pertenciam, mesmo se por vezes a nossa imaginação ou a nossa liberdade de expressão os desorientavam. Por exemplo, a cena da neve. Eles nunca comeram neve, como se vê no filme, mas eles sofrem por causa da neve, da beleza da neve, da neve que queima. Deste modo, assim como há povos que comem terra ou palha, fi-los comer neve.

Extractos de entrevista publicada in Cahiers du Cinema, n.º 276, Junho de 1977. Tradução de Isabel Câmara Pestana e Miguel Wandschneider

Recolhido em: Martins, Ana e outros (da Comissão Organizadora do Ciclo) - Olhares sobre Portugal: Cinema e Antropologia, págs. 45-51, Centro de Estudos de Antropologia Social do I.S.C.T.E. e ABC Cine-Clube de Lisboa, Lisboa, 1993.