140. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Mário Damas Nunes
[Estreia no cinema Satélite, Lisboa - Sexta-feira, 11 de Junho de 1976]
A Terra, o Povo, a Lenda
O filme português “Trás-os-Montes” ia tendo passagem meteórica por uma sala comercial de cinema. Incapaz de alertar, à partida, as mais amplas camadas da população a que verdadeiramente se destina, “Trás-os-Montes” suportou todos os ataques, resiste ao longo de várias semanas. Poderíamos tentar explicar as razões, descobrir causas, encontrar motivos. Preferimos tão só falar de um filme, de um belo filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro, obra máxima de dignidade popular, de recolha histórica, de leitura política, de enquadramento estético e poético.
Devolver a Trás-os-Montes o seu povo e a sua cultura, a sua vida sofrida na carne através dos séculos (milénios), é uma tarefa profundamente política e, acima de tudo, patriótica. Tentar um retrato que se perde na noite dos séculos, tratá-lo à luz contemporânea, perspectivá-lo política, social e culturalmente seria obra, talvez, para uma vida. Os autores resumem mais de duas dezenas de horas de filmagens num produto final condensado, sintetizado, com toda a força que a razão exige, com toda a humildade que a grandeza de um povo lhes pede, em duas horas de antologia no cinema português.
“Trás-os-Montes” é a descoberta de um admirável mundo velho, mundo de história que as sucessivas colonizações e os sucessivos povos foram atravessando, sem no entanto conseguirem adulterar, transformar, a vontade determinado desse povo. No entanto “Trás-os-Montes” não aparece como um filme fácil (António Reis diria que “será um filme difícil, mas a vida desse povo também não é fácil...”), não remete o espectador para a posição passiva habitual de consumo puro e simples de hora e meia de alienação. Antes vai exigir de nós uma ampla participação, obrigando-nos a uma atitude permanentemente atenta e crítica, fazendo-nos acompanhar uma viagem que não é de ficção, antes entrecruzando estas duas formas, numa busca constante ao imaginário de todo um povo e de cada um de nós.
“Trás-os-Montes” é ainda um dos mais belos discursos políticos a que temos assistido. Sem frases demagógicas. Sem “librete” panfletário. Antes pela voz, vida e olhar de um povo esmagado pela opressão, exploração, pela miséria, por todo um sofrimento de partidas sucessivas a que foi sujeito pela emigração como solução última para uma vida, que no seu país não tinha futuro. E aqui, “Trás-os-Montes” é ao mesmo tempo um filme sobre o passado, o presente e o futuro, traduzido na vida, experiência e imaginação das crianças, narradores e intérpretes de uma aventura que cruzam os tempos como num conte de fadas.
Mário Damas Nunes
Revista ISTO É ESPECTÁCULO, n.º 1, pág. 43, Setembro de 1976 (Director e proprietário: Lauro António)
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home