sexta-feira, dezembro 05, 2008

184. «ANA» - Crítica de Luís Miguel Oliveira

[Ciclos da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema]

ANA / 1982
Um filme de António Reis e Margarida Cordeiro

Seis anos depois de Trás-os-Montes, António Reis e Margarida Cordeiro regressavam àquela região para uma nova etapa do seu singularíssimo percurso cinematográfico. Como acontecia no filme precedente, o interesse de Reis e Cordeiro pelo território transmontano obedece tanto a uma lógica do concreto (filmar aquele espaço, compreender aquelas pessoas) como a alguma coisa de mais profundo, mais "subterrâneo" se quisermos, que passa por procurar ver em Trás-os-Montes a manifestação de uma hipotética ordem universal das coisas. Ou seja, Trás-os-Montes nunca aparece no filme de Reis e Cordeiro apenas como um espaço físico confinado e delimitado (se assim fosse, estaríamos no campo do estrito documentarismos, "rótulo" que não cola convincentemente nem a Ana nem aos outros filmes do casal), pelo contrário, o olhar dos cineastas transfigura a região (e as suas pessoas, as suas características, as suas práticas sociais) e fá-la aparecer como uma espécie de "eco do mundo" - como se fosse possível encontrar, ali, uma série de movimentos simultaneamente primordiais e eternos. Todo o filme vive do fluxo incessante entre estas duas dimensões: do lugar ao universal e deste de novo para o lugar, numa troca constante que não faz mais do enriquecer (de sentido e de poder emocional) cada um dos seus elementos. O próprio António Reis usou, em entrevista, o termo "dialética" para explicar o modo de estruturação dos seus filmes. E é uma palavra que fica particularmente bem, com tudo o que sugere quanto ao movimento interior que caraceteriza o cinema de Reis e Cordeiro, sem esquecer que esse movimento se regista não poucas vezes como uma articulação de contrários - poderíamos dizer que o cinema de Reis e Cordeiro é um cinema de "fusão", interessado em conjugar níveis diferentes de percepção da realidade (várias vezes no limite do conciliável) num mesmo plano. O abstracto e o concreto, ou o passado e o presente (para falar daquilo que é mais sintomático em Ana) coexistem de maneira que os torna indistinguíveis, e é nessa coexistência que reside uma das pedras fundamentais da poderosíssima visão do mundo (apetecia dizer: visão do princípio do mundo) exposta no cinema de António Reis e Margarida Cordeiro.

Que tudo isto é um dos motes essenciais deste filme em particular, eis o que se torna ainda mais evidente quando lemos o que Reis e Cordeiro disseram do nome (Ana) que lhe serve de título: "O nome de Ana é o equilíbrio e o desequilíbrio. A-A, o equilíbrio, e N, que ainda não desequilibrou mas a qualquer momento o pode fazer. (...) É uma coisa e o seu contrário". Tudo o que Reis e Cordeiro filmam em Ana se pode resumir a isto, a esta tensão resultante de um equilíbrio instável. Equilíbrio entre quê? Entre as pessoas, entre as coisas, entre os lugares, entre pessoas, as coisas e os lugares. Tudo é visto em Ana como se se tratasse de um imenso "puzzle" cósmico, onde a mais ínfima coisa ou o mais desapercebido gesto têm o seu posicionamento justo na composição de uma ordem universal que os transcende. Uma sensação de plena harmonia que se desprende da minúcia com que a câmara de Reis e Cordeiro enquadra as relações dos homens com a natureza ou os rituais familiares, por exemplo - como se tudo fosse da mesma ordem, como se essa ordem fosse algo de uno e verdadeiramente indivizível. E no centro, Ana, personificadora desse equilíbrio cósmico - é ela a garantia da sua imutabilidade, é ela que funde o passado no presente, é por ela e em torno dela que o mundo gira.

De uma beleza serena e imensa, Ana é um filme secreto (quanto do que tem lá dentro podemos, de facto, compreender?) e frágil. A impressionante comunhão que mantém com as coisas que filma é fruto da extrema e delicada sensibilidade do olhar da câmara de Reis e Cordeiro: raras vezes a profanidade inerente ao acto de olhar (ou de filmar) terá alcançado, como recompensa, uma tão pungente proximidade com o sagrado.

Luís Miguel Oliveira

Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema:
. "António Reis e Margarida Cordeiro: a poesia da terra", Faro, 22 de Novembro de 1997;
. "Fábulas e lendas", 31 de Julho de 2002.