segunda-feira, junho 27, 2005

071. CONVERSA COM MARGARIDA CORDEIRO - Entrevista por Ilda Castro - 1

Conversa no Mogadouro
Margarida Cordeiro
nasceu em 1938, Mogadouro

A Margarida participou na preparação, produção, montagem e pós-produção do Jaime, o primeiro filme de António Reis, realizado em 1973. Julgo que foi a sua primeira experiência em cinema. Como é que aconteceu?

A primeira vez que eu trabalhei em cinema foi efectivamente no Jaime, do António. O António foi o realizador. Eu não assinei (tinha oportunidade de assinar como realizadora), achei, honestamente, que não devia assinar. Aí funcionei como assistente de realização. Colaborei na rodagem e na ideação do que se ia filmar, fui eu que descobri quer o doente - que já tinha morrido – que o trabalho em que se baseou o filme, que não é uma biografia. O doente estava morto e nós tentámos fazer uma homenagem digna. Aprendi nesse filme a fazer cinema. Gostei muito de o fazer. É um filme de compromisso tem pouca ficção porque não nos atrevemos a inventar sobre uma pessoa que, para além de já não estar viva, tinha sido doente mental quase durante 30 anos. É muito difícil abordar pessoas doentes, não faltar à verdade a essas pessoas. Falámos com a família, com a viúva, com as filhas, colectámos todos os desenhos que havia disponíveis, que já não eram muitos, tinham sido destruídos no próprio hospital.

Foi enquanto médica psiquiatra que descobriu o trabalho do Jaime?

Não. Eu estava no Porto a trabalhar. Tinha-me formado em Medicina, tinha escolhido Psiquiatria, e por não haver nessa altura Psicanálise no Porto, mudei para Lisboa.
Quando entrei no hospital Miguel Bombarda vi numa parede um desenho fabuloso, mas pensei que era uma cópia – eu já conhecia o museu de Lausanne e a chamada Arte Bruta. Portanto, vi uma coisa espantosa na parede, tão boa que pensei que era uma cópia. Isto era no meu gabinete, onde eu trabalhava; um dia, passo mesmo ao pé do desenho, verifico que era feito com esferográfica e pergunto de quem era. Dizem-me que era de um senhor que tinha acabado de morrer, por uns meses eu não o conheci. Mas percebi logo que aquilo era excepcional e fomos juntando os desenhos.

Participou na concepção do Jaime?

As ideias para este filme foram na maior parte do António, foram baseadas nos desenhos. Usámos uma máquina especial – a truca -, que se aproximava perpendicularmente ao desenho esticado entre duas transparências. As poucas saídas documentais foram no rio Zêzere, perto da Covilhã, no Fundão, onde ficava a casa de lavoura onde ele tinha trabalhado, até se notar que estava doente e ter sido internado. Tínhamos ideias fabulosas, mas lembro-me que a maior parte das ideias de que falámos não foram transpostas.

Tiveram apoio de alguma instituição para fazer o filme?

Eu não fui produtora, nunca fui. Não lhe posso dar dados concretos. Acho que a Fundação Gulbenkian, que sempre nos ajudou, deu uma parte. O filme foi feito com 800 contos, uma ninharia. O Acácio de [Almeida], director de fotografia foi pago, nós não ganhámos absolutamente nada. A montagem foi feita por nós, foi um filme barato. Foi feito em 35 mm, com os restos que havia no Centro Português de Cinema (também para optimizar o que lá existia), onde estava o Fernando Lopes, a Noémia Delgado, nessa altura na sala ao lado a fazer montagem, e também o Artur Semedo...

Foi aí que começou o seu amor pelo cinema?

De cinema, gostei sempre. Mas fazer cinema foi através do Jaime. Apercebi-me das engrenagens e percebi que era difícil. É uma parte complexa e apaixonante.
Trás–os–Montes foi um primeiro filme realizado por si e pelo o António Reis.
Nós no Trás–os–Montes fizemos uma saga: vínhamos todos os anos aqui para Trás–os–Montes e fazíamos milhares e milhares de quilómetros, de Land Rover – à nossa custa, claro. Chegámos a viver algumas dias em aldeias próximas de Bragança, fotografando onde mais tarde filmámos, anotando as épocas de floração das árvores para depois ser fácil escolher lugares alternativos. Há muito trabalho antes da rodagem do Trás–os–Montes, milhares e milhares de quilómetros. Neste filme, fomos os argumentistas, fomos os realizadores, fizemos a montagem, fizemos tudo menos a produção.

O que pretendia criar e mostrar com esse filme?

A linguagem fílmica é uma linguagem muito própria, a única que não se pode reduzir a outra, nem por palavras nem por traillers. Nós queríamos traduzir em linguagem fílmica o nosso encantamento com as gentes, os animais, as paisagens e o modo de vida desta zona. Quisemos traduzir a maravilha que sentíamos.

Em dada altura, os personagens aparecem com vestes de outros tempos. Há um hiato temporal, passa–se para um ambiente algo fantástico. O que significa essa passagem de um quotidiano contemporâneo para essa outra realidade?

Nós tentámos não fazer essa parte "fantástica". Fizemos uma realidade já trabalhada que é aquela que se filma - colocando a câmara num sítio estamos já a condicionar a tomada de vista -, mas não fizemos um documentário. Trabalhámos o modo de recolher os dados visuais e sonoros. A certa altura, apercebemo-nos de que havia uma espessura histórica nesta terra. As pessoas já não estavam cá, os castelos estão desfeitos. Mas houve uma espessura temporal, aqui viveu gente há muitos, muito anos, continuamente, os filhos dos filhos dos filhos. E através disso quisemos dar uma respiração ao filme. A intriga linear de um filme é A dá B, B dá C; por vezes, há uma pequena troca e o espectador segue alegremente esse suspense e fica aí na conclusão; ora nós fizemos isto em registos de música – como costumávamos dizer - e são tempos e são ritmos diferentes, mas são um Trás-os-Montes que nos pareceu que poderia ter sido assim. Portanto, falar destes camponeses, mas não só no século XX, sempre noutras épocas, porque nós encontrávamos vestígios dessa vida.

O Trás-os-Montes é produzido em 1974-75.O vosso filme seguinte foi Ana, produzido em 1981, e também decorre em Trás-os-Montes, tal como o último.

Decorrem todos em Trás-os-Montes. O Ana já foi um pouco diferente. Nós tínhamos feito o Trás-os-Montes. O Trás-os-Montes foi feito com uma paixão e uma novidade incrível. O Ana foi mais pensado, porque estávamos na posse de muitos dados, conhecíamos esta terras, tínhamos pessoas conhecidas em todo o lado, se nós fazíamos as coisas de uma maneira errada essas pessoas corrigiam-nos, tentámos não ser infiéis às coisas que víamos. O Ana foi mais consciente, dominávamos melhor o instrumento; por isso, as pessoas acham-no mais seco, mas o Ana é mais rico, muito mais bem feito. Nunca ninguém analisou bem estes filmes. Porque os nossos três filmes são como pedaços de filmes que rimam mais tarde, ou que são anunciados antes, tal como na música. Nunca ninguém analisou um só desses filmes, nem aqui nem em França.

O Rosa de Areia é produzido em 1991. Que relação tem com os filmes anteriores?

São variações do mesmo tema. E há talvez um maior domínio dos meios, fazíamos as opções mais rapidamente.

Eram filmes muito trabalhados conceptualmente. Como era a fase de pesquisa?

Eram muito trabalhados conceptualmente e, depois, tentávamos que sensivelmente fossem de uma frescura espontânea – o que é mentira, dado que dava muito trabalho criar essa aparente espontaneidade. Mas os filmes que poderíamos ter feito a seguir iriam beneficiar de todo esse trabalho, e é por isso que dói parar. Se os planos nem sempre corriam como desejávamos, aprendíamos para o futuro. Aprende-se imenso fazendo, bem ou mal. Foi isso que doeu mais, não continuar a trabalhar. A pessoa começa a dominar um meio de expressão, que é o cinema, e de repente obrigam-nos a parar por condicionamentos externos.


(Continua...)

Ilda Castro - Cineastas Portuguesas 1874-1956, págs 92-107, Câmara Municipal de Lisboa, 2000.

Agradecimentos: À autora da entrevista, Ilda Teresa Castro, pelas suas palavras de incentivo e por ter a amabilidade de se juntar ao grupo de amigos do blogue "António Reis". À Cristina M. Fernandes por ter a gentileza de nos enviar, por carta, cópia da entrevista. Muito obrigado!