sábado, abril 12, 2008

178. «ANA» - Entrevista por Pedro Borges

[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]

“No cinema é como se fôssemos uma só pessoa”

Há quase um ano, o «JL», por ocasião da publicação do seu centésimo número, promovia a antestreia em Lisboa de «Ana» de António Reis e Margarida Martins Cordeiro.
Apresentado pela primeira vez no Festival de Veneza em Setembro de 1982, o filme seria depois exibido noutros festivais de cinema, desde a Figueira da Foz, passando pelo Forum de Berlim, a Semana «Cahiers» em Paris, Hong Kong, Valladolid (onde recebeu a Espiga de Ouro), etc., e em França entrou no circuito da exibição comercial.
Entre nós, um longo (e lamentável) conflito opôs os realizadores ao Instituto Português de Cinema, o que levou a que a estreia do filme fosse sucessivamente adiada. A razão de António Reis e Margarida Cordeiro era tão simples como isto – a ampliação da película para 35 mm teria que respeitar o seu trabalho (e o público que iria ver o filme) e, como tal, devido às limitações dos laboratórios nacionais para executar tal tarefa, ela teria que ser realizada em França.
Finalmente resolvida a questão a contento dos realizadores, o adiamento da abertura do Fórum Picoas, foi outra razão para que o filme só no passado dia 6 fosse estreado em Lisboa.
Entretanto, e como se este longo e desencorajador processo de mais de dois anos não fosse suficiente, e numa decisão a todos os títulos escandalosos, uma parte (maioritária na altura da votação) da «Comissão de Qualidade» resolveu negar esse estatuto ao filme.
Para que[m], como os realizadores, viveu intimamente todo o percurso acidentado do filme, não é seguramente fácil neste momento assistir a mais este atropelo ao seu trabalho.
Na conversa que com eles mantivemos, tentámos não pensar em tudo isso, procurando que mais um pouco da sua atitude perante o cinema se fosse revelando no correr do amor por um filme como «Ana»...

– Acham que, pela sua radicalidade singular, se pode ver o «Ana» como um filme feito como se o cinema não existisse como se não tivesse existido cinema antes, nem depois?
Margarida Martins Cordeiro – Quando uma obra aparece e não copia nenhuma outra, acho que também se está a fazer cinema. Mas nós não estamos a inventar nada, no sentido em que o cinema se está a inventar sempre...
António Reis – A nossa posição é radical porque nós não nos inspiramos na obra tal do cinema para fazer os nossos filmes. O cinema tem uma espécie de pré-história, umas ingerências esquisitas das outras artes, mas o que é certo é que, desde os primórdios, nós podemos detectar o que vai ser o cinema como algo de muito específico em relação às outras artes. É isso que nos irmana com o espírito das formas cinematográficas. Nós negamo-nos a que situem o nosso cinema em relação ao cinema português, a nossa aventura no cinema é em relação à grande aventura do cinema mundial...
O nosso desejo de fazer cinema é fatal, pode-se dizer quase isso, e a nossa aventura é nesse fio. Não disputamos isso só por trabalho, é porque só esse risco e só essa oferta é que são justas para aparecer a alguém com um filme feito. E só esse risco que nos interessa, chamem-lhe megalomania ou o que quiserem... mas creio que se não fosse isso nós não faríamos cinema...
– Em Portugal, vocês são o único caso de duas pessoas que assinam filmes conjuntamente. Acham que é possível determinar a parte, ou a contribuição própria de cada um, nesses filmes?
M.M.C. – É realmente muito difícil. A nós mesmos nos escapa o fenómeno, porque quando estamos a trabalhar funcionamos como uma só pessoa.
A.R. – Isso é tão verdade que tu podes em quase todos os casos determinar o que é um cinema feito por mulheres ou por homens, mas nos nossos filmes não podes dizer que eles sejam feitos por um homem ou por uma mulher...
M.M.C. – Ou que seja neutro, que esteja neutralizado...
A.R. – Eu dir-te-ei que é tal a globalidade de que te falei de pequenas formas...
M.M.C. – Eu acho que a coisa, no fundo, é muito simples. Eu sou uma pessoa incompleta, tenho realmente coisas para que acho que tenho jeito, não estou a dizer quais são, e há outras que me fazem completamente carência.
Não sei porquê mas acho que o António Reis completa isso, ajusta-se como um puzzle. Não estou a falar na vida real, que nós temos as nossas desavenças como toda a gente, mas no cinema damo-nos perfeitamente é como se fôssemos uma só pessoa. Como se eu fosse a metade de um cérebro, de um lado, e ele fosse a outra metade. Não sei explicar melhor. Sei que realmente nós nos damos bem a trabalhar, e a obra sai, mas não sei dizer o que é meu e o que é dele.
Acredito que isso possa acontecer mais vezes noutros campos, acredito que sim. Talvez na vida quotidiana isso aconteça até mais vezes entre um homem e uma mulher...

Um acordo perfeito

– Mas então como é que isso acontece no processo de elaboração dos filmes?
M.M.C. – Antes do filme nós falamos muito tempo, afinamos ideias, afinamos emoções, e quando partimos para o filme já sabemos o que vamos fazer, quase já não precisamos de falar um com o outro. Eu comparo isso a um «artista» que está a escrever sozinho, com essas duas metades do cérebro, que vai rascunhando, vai corrigindo, e trabalha consigo próprio. Nós conseguimos fazer um acordo perfeito no trabalho, eu volto a repetir, no trabalho.
A.R. – E acontece que nessa cooperação, realmente no acto de fazer, tudo se concretiza, embora nós saibamos que depois há a montagem, há talonagens. Mas há momentos onde nós sentimos que as matérias confluem e mesmo aquele imaginário que nos parecia o mais consistente, o mais prodigioso, o mais poético, é processado e às vezes cai pela base; e se não houver um coração amplo e ao mesmo tempo a tal frieza a conjugar-se, não é possível, em face de estruturas muito fortes, saber-se o que vai resultar.
M.M.C. – Nós até aqui só temos três filmes, dois e meio eu, mas o princípio penso que nós tacteávamos mais no escuro e por vezes chegávamos a certos pontos, que levávamos em pensamento não escrito (as possibilidades de fazermos este ou aquele plano) e a realidade contradizia-nos.
Cada vez isso acontece menos, porque estamos progressivamente a ter uma visão mais cinematográfica das nossas emoções, eu pelo menos acho isso. Penso que daqui para a frente eu cada vez errarei menos, cada vez filmarei com menos pânico, que ele existirá menos... Quer dizer, os meios começam a estar mais dentro da nossa mestria.
– O «Ana» é um filme muito feito a partir de memórias, recordações de infância...
M.M.C. – Todas as memórias são de infância, pelo menos para mim e as coisas mais fortes são da infância, as coisas posteriores vão buscar referências à infância. Mas essa ideia deve vir mais de uma sinopse que nós tivemos de redigir, uma concessãozita que nós fizemos, um resumo sob pressão. É um pouco isso...
A.R. – Mas não há nada que esteja no «Ana» que seja a recriação de um acontecimento que esteja na nossa memória. Toda essa memória foi absolutamente submetida a um processo imaginário, senão seria a ilustração de um fenómeno de memória, que estava num arquivo... Aliás o próprio tempo já se encarrega de esbater coisas, de alterar umas e de trazer outras...

Pintura e cinema

– Vocês dão grande importância à composição interna de cada plano, à escolha das cores e dos materiais, e talvez por isso houve muita gente que falou em pintura quando viu o filme.
A.R. – Mas nunca é uma composição pictórica. Nós consideramos que as artes plásticas, com os conhecimentos que temos, poderiam ser o maior inimigo do nosso cinema, e essa tem sido uma grande confusão, mesmo por parte de grandes realizadores, ao pretenderem fazer a transposição dos fenómenos pictóricos para o cinema. Isso é tão errado como pretender transpor a ficção literária para ficção cinematográfica...
Mesmo sem pensar na dinâmica própria dos meios cinematográficos, o movimento, a temporalização, basta pensar até no domínio da pigmentação – todo o cromatismo cinematográfico é obturado, varia na escala dos planos, etc., e esse fenómeno é totalmente diferente na pintura.
É ridículo tentar ilustrar a pintura com o cinema e eu até diria, parafraseando aquelas legendas que aparecem no princípio dos filmes, qualquer coincidência entre as artes pictóricas e o cinema que nós fazemos, não é mera coincidência, é néscia exploração, ou néscia cultura.
M.M.C. – É não perceber nem de cinema nem de pintura.
A.R. – No fundo, quando os realizadores se servem disso, é mais como uma muleta que se buscou, ou na música, o na literatura.
Não há dúvida que há um aspecto às vezes quase perfumado, há um aspecto táctil em muito do que nós fazemos. Mas não é por ser tributário da pintura, eu diria que é por uma vivência das matérias, quer cinematográficas, quer das coisas que nós apanhamos, e como as apanhamos, na própria vida.
Eu pus uma vez este problema: suponhamos que, por um paradoxo incrível, o cinema tinha sido inventado antes da pintura. Será que toda a grande pintura que se fez teria sido tributária do cinema... é uma loucura pensar nisso. Esta violência ninguém a leva a sério, é evidente que era impossível.
– Não sei então se estão de acordo que uma das coisas que mais ressalta do vosso tipo de trabalho com o cinema é um extremo cuidado com o aspecto visual, com a composição dos planos, a utilização das cores, a forma como o som é tratado...
M.M.C. – Talvez isso se note mais devido à rarefacção do diálogo que tradicionalmente invade tudo, diálogo de que neste filme nós não precisámos muito. Não quer dizer que no próximo filme não se fale mais, ou até bastante, mas neste filme isso não foi necessário. Talvez por essa razão os sons ressaltem mais, porque as pessoas que estão habituados a ouvir, a canalizar tudo pela via lógica, pela fala, desta vez não têm essa muleta, essa facilidade.
Têm mesmo que ver o que lá está, têm de ler outras coisas. E há lá muitas outras coisas, para ver e ouvir.

A nossa exigência é maior

A.R. – De resto, uma vez que o cinema é realmente uma relação dialéctica imagem e som, seja em que sentido se movimentar, a ocupação tem que ser integral. Então num filme como o nosso, em que não há psicologia nem simbolismo, tudo está em tudo, a nossa defesa é muito menor, a nossa exigência é muito maior e o espectador...
M.M.C. – O espectador tem que contribuir mais...
A.R. – O espectador tem que se habituar, não a ler a boca da pessoa, mas tudo o que lá está.
– Penso que o vosso filme é um filme de exteriores, no sentido em que toda a banda sonora dá sempre primazia às cadências atmosféricas. Eu estava a ver o filme como se o próprio ar, os ventos, saíssem da tela e entrassem pela sala de cinema. No filme há uma imanência da imagem e de repente, pela banda sonora, somos remetidos para a ausência que é o exterior...
M.M.C. – Para nós, no filme, a natureza funciona como uma casa exterior. Há uma casa, com os seus espaços e os seus sons, mas os sons exteriores dão-nos a ideia de uma casa que é fechada sobre si própria e aberta sobre a natureza, por fora também é uma casa, também está habitada.
A.R. – Eu penso que o que tu não tens são noções realistas de vento...
- Se houver realismo é um realismo mágico, onde as coisas são extrapoladas...
A.R. – Tu não queres dizer que sintas a chuva que molha, ou o vento... tu sentes é o fenómeno físico do vento, esteticamente. Nesse sentido é correcta a tua interpretação.
M.M.C. – Quer dizer, o simbólico é sempre tudo o que as pessoas pensam, nunca fugimos ao simbólico. Estamos a falar num simbólico não grosseiro. Nós damos a chuva, o vento, com a mínima carga possível. Dentro do nosso filme, com as conotações todas que tem, há disponibilidade da pessoa que está a ver, sem grandes cargas simbólicas, pelo menos não muito marcadas.

Pedro Borges

Jornal da Letras, págs. 8 e 9, de 14 a 20 de Maio de 1985.