172. «ANA» - Crítica de José Vaz Pereira
[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]
DISCURSO INOVADOR FEITO DE REGRESSO ÀS ORIGENS
«ANA»
MONTANHA
VOLTA A SER MÁGICA
FINALMENTE «Ana», de António Reis e Margarida Cordeiro, acabou por estrear-se, ao fim de uma série de vicissitudes e contrariedades. O percurso muito próprio e muito pessoal dos seus autores estabelece dificilmente um «modus vivendi» com o sistema. «Ana» é um filme que nada tem a ver com o que o rodeia. Esta independência, este caminho que já vem de «Jaime» e de «Trás-os-Montes» faz da obra de António Reis e de Margarida Cordeiro um caso à parte.
Escrevemos acima que «Ana» é um filme que nada tem a ver com o que o rodeia. Vistas as coisas de outra maneira talvez tenha a ver com tudo. «Ana» equivale a algo de muito profundo, a sentimentos, a sensibilidades e a culturas aparentemente perdidas mas que jazem adormecidas dentro de nós. O filme de António Reis e Margarida Cordeiro vem de muito longe, da noite das origens, mas, curiosamente, está perto da nossa sensibilidade e, nesse sentido, concordamos com várias pessoas que têm afirmado que «Ana» se liga à maneira de ser portuguesa mas não no sentido mais imediato. Pelo contrário. Essa ligação tem a ver com um relacionamento homem-terra, homem-mundo, é vasta e complexa, abarcando uma área tão imensa que se torna difícil, quando não impossível, delimitá-la por fronteiras.
«Ana», que à primeira vista parecerá um filme só habitado pela memória, transforma-se numa vivência. Ao contrário do que acontecia com a sua longa-metragem anterior, António Reis e Margarida Cordeiro colocam esta obra tão esperada não numa determinada província ou região caracterizada mas num estado de espírito. Claro que este estado de espírito tem uma tradução geográfica mas, se olharmos para as montanhas veremos provavelmente mais do que lá está, outras paisagens ainda, ou então pode acontecer que cada um tenha a sua montanha.
«Ana» está longe de ser um filme hermético. Mas habita outro tempo, possui outra respiração e mostra outro ritmo. Contar uma história ou montar um espectáculo, são totalmente alheios à sua essência. Numa palavra, não é disso que se trata e quem procurar por esse caminho ficará com certeza desiludido.
O regresso
O tempo é diferente dentro de outro tempo. Nesse sentido, «Ana» é o menos convencional dos filmes, não respeita nenhuma das regras a que a produção massificada foi pouco a pouco habituando o espectador, quase o amolecendo nas suas escolhas. Ele está, muitas vezes, mesmo sem dar por isso, à mercê de um produto estandardizado.
Com «Ana» encontramo-nos num cinema que não é susceptível de se medir pelos padrões normais. Diríamos que se trata de um filme belo mas com uma beleza que tem a ver com um discurso inovador. Curiosamente um discurso inovador que se faz através de um antiquíssimo tempo de regresso às origens, onde coexistem ecos de infância e de crepúsculo a cada canto, onde somos transportados a um país longínquo que outrora habitámos e que um dia – quem sabe? – voltaremos a habitar. Pela mão de António Reis e Margarida Cordeiro regressamos «lá» onde os olhos de uma criança, o voo de um pássaro, o ondear de uma seara, o calor do lume na lareira podem ter ainda significado.
Não existe continuidade de sequências, mas antes «momentos» que poderão equivaler a impressões fortes deixadas em nós e que não se pautam pela habitual sucessão cronológica. O fogo, o leite, a água, o vento, sentidos de uma maneira nova, são alguns dos tais elementos que mergulham nas raízes e a partir dos quais se constrói um universo de reminiscências e de anseios. António Reis e Margarida Cordeiro falam também da «dialéctica» da luz e não há dúvida que ela representa também um papel muito importante no olhar do filme, o elemento visual jamais terá sido tão nobre. Aliás, os tais momentos têm sempre um ponto comum e esse ponto comum é um profundo sentido da terra desocupada, neste caso pelos que emigram, mas que através dos olhos das crianças, dos adolescentes, dos velhos, volta a ser povoado pela emoção e pela lembrança. «Ana» confirma a via especial que António Reis e Margarida Cordeiro escolheram e se espera que desenvolvam.
José Vaz Pereira
Jornal A Capital, pág. 23, de 9 de Maio de 1985.
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