quarta-feira, dezembro 07, 2005

121. PROJECTO "NORDESTE" [TRÁS-OS-MONTES]

ARQUITECTURA DO NORDESTE
MÉDIA METRAGEM


António Reis, nome já ligado ao cinema desde que assinou os diálogos do filme de Paulo Rocha, Mudar de Vida, é um dos principais impulsionadores da ideia do Museu da Imagem e do Som. Dele é o projecto talvez mais ambicioso, em todo o caso o de maior premência: um filme sobre o Nordeste, sobre o qual António Reis, melhor do que ninguém, expõe numa memória oportunamente enviada ao Instituto Português de Cinema, o que é o projecto do seu filme. António Reis, esclarece neste texto que a seguir transcrevemos, o que poderá vir a ser um filme que, desde já, se nos afigura poder vir a abrir caminho a uma concepção menos passiva do que seja um cinema que inventarie a realidade portuguesa.

(1.ª MEMÓRIA)

• Na fase actual da Cooperativa, francamente aberta e inquieta, afigura-se-nos que, por muitas razões, haveria que dedicar pequenas verbas e grande atenção a documentários da natureza que o título sugere.

• Não são apenas certas espécies naturais que se extinguem ou massacram – e não há só espécies naturais...

• Claro que, entretanto, os «nossos» etnógrafos não dormiram... Mas dormem os milhares e milhares de fichas e fotografias nos arquivos de metal, enquanto as paredes de xisto tombam sem ruído, os telhados de colmo apodrecem – e os homens partem. Passa-se a bibliografia especializada e comunicações de Congresso um estilo de vida, já tão erodido como as terras. No ano 2000 (dizem), saber-se-á como os transmontanos... ou no ano 3000, etc. Assim nos sensibilizam os insectos fossilizados no âmbar do Báltico.

• Irá mais longe o cinema do que os ficheiros? Será a sua película outro âmbar?

• O cinema circula e tem implicações globais. Não inventaria. Os eventuais conhecimentos científicos do cineasta são absorvidos pela estética e pela comunicação.

• A propósito da Arquitectura do Nordeste, ocorre-nos o «Nanouk» e a «Terra sem Pão» – réplicas impossíveis, mas documentos pertinentes e anzol na carne. Incentivo também.

• Há dias, por campanha pública, salvou-se uma árvore quinhentista (assim a designou a Imprensa). Ainda bem para a árvore, mas... o documentário era outro.

• Também se fez uma campanha internacional (e nacional) para salvar os pavilhões de Baltard, em Paris. Porém, os pavilhões tiveram menos sorte do que o nosso castanheiro das descobertas. O documentário também seria outro.

• Que a nossa Arquitectura do Nordeste, com uma simples coluna de xisto e lintais de castanho, vale mais – em função, forma e estrutura – do que os pavilhões positivistas de Baltard, qualquer arquitecto consciente o pode confirmar. Mas, para salvar, ainda não houve campanha a nenhuma escala...

• Poupamo-nos ao ridículo de pretender salvar a arquitectura algures e a olaria onde quer que seja.

• Mas o desafio para documentários de conteúdo bem complexo está lançado e há que aceitá-lo ou não. Nós, aceitámo-lo, sem paixão regionalista (nem somos do Nordeste) ou populismos fáceis. O que serão esses documentários ninguém o pode prefigurar. Implicarão uma luta corpo-a-corpo com formas ancestrais e modernaças, entre lobos e Peugeot 504, entre arados neolíticos e botijas de gás.

• Metáfora ou realidade, a Arquitectura do Nordeste é a nossa única arquitectura românica laica. Right elogiá-la-ia pela sua integração na natureza; Le Corbusier pelo seu funcionalismo. No entanto, o seu estilo não é uma simbiose remota das correntes que marcariam o nosso século. É, sim, a expressão do homem gregário contra os elementos e dominando os elementos; a aplicação de técnicas no conceito antropológico para dominar a natureza e transformar a natureza; a invenção sem fantasia, porque a neve tudo cobre e o vento tudo arranca; uma imaginação prática, porque o feno dos telhados foi cegado e o xisto das paredes deu centeio...

• ... expressão do homem gregário! Tão real e certa, que a hemorragia da imigração, a desagregação, solta as pedras uma a uma até à derrocada. Pelo menos postigo, cercado de caliça antiga, lobrigam-se olhos curiosos: mas são de velhos e crianças. Vulgarmente, a pedra do moinho, no centro da lareira, só tem cinzas antigas, sem histórias e lobisomens. A mesa do escano (arquitectura pura) não desce há muito para uma ceia em comum, ou na sua cama, não convalesce nenhum doente.

• Sobre toda esta «temática», que se emaranha pela memória e pelo escândalo propomo-nos rodar um filme de 16 mm, a preto e branco, como convém a uma ácida água-forte. António Campos, então a rodar o seu filme sobre Rio-de-Onor, prontificou-se a ser operador. Não poderíamos ter melhor colaborador para a realização que temos apenas em mente.

(2.ª MEMÓRIA)

• Pensa-se dar maior presença à flora do Nordeste e à geografia física (sem folclorismo), valores essenciais para significação da sua arquitectura telúrica e vitais em face da delapidação irreversível da natureza.

• Por outro lado, oscilando os seus valores plásticos entre Breughel e Rembrandt, a cor tornou-se imprescindível. Um campo de arçã (rosmaninho) e de maias é a apoteose do paganismo e requer cor: um lagar de azeite comunitário, com um castanheiro gigante abrigado numa casa, requer cor: uma coluna de xisto, com 5 m, da cor de ardósia, da nossa infância, requer cor, etc.

• No filme em questão, vai também incorporar-se uma dimensão vivida por todos nós e vivida «in loco» nas nossas permanências no nordeste: referimo-nos aos jogos... Aos jogos dos velhos e das crianças, que dialectizam na ponte da vida. A própria magia, obscura, lúdica, rescaldo, será integrada neste poema antiquotidiano e... quotidiano.

• Esta dimensão será retomada e constituirá a poesia essencial de outras realizações que, à escala nacional, oportunamente se proporão à Direcção do C.P.C.

• Conforme se especificou na memória inicial, o filme não será programático: o tema da arquitectura é uma realidade global habitada, exposta. Mas evidentemente que se articulará e enunciará a sua gramática formal, originalíssima. Para a sua expressão, supomos não estar desprevenidos, quer pelos estudos que esta arte sempre nos mereceu, quer por um trabalho sistemático feito com o arq.º Arnaldo Araújo para a efectivação da sua tese sobre a Arquitectura do Nordeste. Esta tese, «revolucionária» na Esc. Sup. de Belas-Artes do Porto, foi determinante para derrubar o academismo e para atrair a geração subsequente a novas vias.

• Em Trás-os-Montes, há nove meses de Inverno e três de inferno, pelo que a realização deste filme se deveria iniciar em Maio e Junho próximos. Contamos com as nossas três semanas de férias anuais para a tomada de imagens.

ANTÓNIO REIS


Cinéfilo, n.º 27, págs. 24-25, de 6 de Abril de 1974

NOTA: António Reis volta a referir-se ao seu projecto "Nordeste" (cujo nome, mais tarde, foi alterado para "Trás-os-Montes") no Cinéfilo, n.º 29, págs. 23-32, de 20 de Abril de 1974, durante a entrevista que deu a João César Monteiro sobre "Jaime".