137. "TRÁS-OS-MONTES" - Carta de Luís Machado
[Estreia no cinema Satélite, Lisboa - Sexta-feira, 11 de Junho de 1976]
Carta aberta a um poeta-cineasta chamado António Reis
Meu caro António Reis:
Foi com emoção que vi este teu segundo filme (teu e da Margarida Martins Cordeiro). Acredita que a sensação que tive foi a de ter visto uma das mais bela obras que o cinema português produziu até hoje. O esforço de dois anos, empreendido por vocês, valeu realmente a pena. Devo confessar-te, antes de mais, que quando me decidi a escrever-te esta carta aberta o fiz não por qualquer obrigação crítica, mas apenas porque senti que o devia fazer. Porquê? Fundamentalmente por considerar que um cinema honesto como o vosso é útil e importante para todos nós portugueses: 1) Porque é genuinamente português. 2) Porque levanta questões que outros filmes portugueses escamoteiam. 3) Porque entendo que a divulgação de um cinema como este é gritantemente necessária. 4) Porque um filme como «Trás-os-Montes» não pode nem deve ser retirado do cartaz sem que uma grande parte dos portugueses tenha tido oportunidade de o ver. Entendi «Trás-os-Montes», para além de uma homenagem, essencialmente como uma defesa corajosa e intransigente de um povo e da sua cultura.
É uma denúncia grave do desinteresse e da apatia a que uma série de governos tem condenado as terras transmontanas e a sua gente. É o retrato de um povo trabalhador que há séculos é permanentemente humilhado e escravizado. Mas é também o sofrimento, a angústia, a frustração, o subdesenvolvimento e o analfabetismo de uma parte do povo português e de uma vasta parcela do território nacional.
É pertinente perguntar: será que Trás-os-Montes não é Portugal? Então para quando a solução dos problemas reais dos transmontanos? Para quando a descentralização cultural e administrativa? Mal conheço Trás-os-Montes e, tal como diria Jean Rouch, não gosto de falar do que conheço mal, mas o tom sincero das imagens deste filme de tal maneira me impressionou que não tive a menor dúvida em aceitá-lo.
No vosso filme há a estranha sensação de que cada sensação de cada minuto que passa é uma espécie de sopro na vida que se vai apagando, tudo isto traduzido numa original linguagem de imagens, sons e silêncio, que só dois poetas com a vossa sensibilidade conseguiriam criar.
«O ritmo é lento» - comentavam alguns espectadores à saída; é evidente que tinha mesmo de ser assim, a vida em Trás-os-Montes também é muito lenta. É um tempo que demora muito a passar, é um tempo de eternidade, é um tempo de sofrimento. É evidente que há muitas pessoas que podem não gostar do vosso filme, o que é legítimo. Todos nós sabemos que nas grandes cidades a mecanização da vida é uma realidade. Quantas vezes o egoísmo dos seres que nelas habitam leva à segregação da nossa população rural e ao implícito alheamento da sua cultura?
Para alguns, pois, a temática no vosso filme pouco interessou, mas não será salutar a existência de pessoas que gostem e rejeitem? Para já é sinal de que foram motivadas a ver «Trás-os-Montes», mas acima de tudo é a confirmação do começo da existência de uma análise crítica por parte dos espectadores portugueses.
Não esqueço o que uma vez disseste – «Em Trás-os-Montes, há nove meses de Inverno e três de inferno» – recordas-te? De facto, a vida em Trás-os-Montes é um autêntico inferno permanente de luta e esquecimento. Nas aldeias transmontanas quase só existem mulheres, crianças e velhos; a culpa é do fenómeno da emigração, que obriga os homens a procurar outros locais de trabalho, nas cidades, na maior parte dos casos estrangeiras, de forma a poderem matar a fome à sua família. Talvez por isso, para aqueles que ficam, exista uma dimensão de solidão terrível, uma espécie de incomunicabilidade permanente com uma civilização que lhes é distante.
A cena do adeus, aquela do pai que parte deixando a filha acenando-lhe durante largos minutos, até desaparecer quase no infinito, é de um simbolismo e de uma beleza estética impressionantes. Os jogos das crianças, a própria rudeza permanente da paisagem transmontana, sendo de salientar em especial aquela cena do comboio perdendo-se na noite, com uma simbólica cortina de fumo branco a envolvê-lo, são realmente inesquecíveis.
Que tipo de cinema nos mostra então o filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro? Um levantamento etnográfico, um diário intimo, uma viagem pelo imaginário ou um cinema-poesia? Talvez um pouco de tudo tenha tornado «Trás-os-Montes» num novo tipo de cinema realizado em Portugal. Quer através dos processos, quer através do estilo pessoal dos seus autores, quer pela própria dialéctica que encerra, estamos na verdade perante um acto estético dos mais puros. Para reforçar diria até que este belo filme marca a abertura de um curioso processo dialéctico entre a estética e a técnica do cinema, o que me parece que poderá resultar igualmente em termos de comunicação social se o processo for aprofundado.
A um filme como este, que é um retrato de um cinema directo, pois marca uma decisiva vitória para o nosso cinema, cabe levantar três questões: a primeira está directamente relacionada com o som; eu sei que a culpa não é vossa, mas é uma tristeza que um filme desta qualidade seja sabotado pela péssima banda sonora. Será que os técnicos portugueses são impotentes? Será que não conseguirão realmente resolver o problema do som? Passemos à segunda questão, esta relacionada com os silêncios – são maravilhosos; não há dúvida que as imagens são suficientemente fortes para nos dizerem tudo, mesmo sem o mínimo ruído. A terceira e última questão é relacionada com a não existência de maquilhagem nos rostos das figuras humanas. Alguém criticou a tua teimosia por durante as filmagens teres recusado maquilhar os intérpretes; ora eu concordo inteiramente contigo em não os teres maquilhado, pois se o fizesses decerto destruirias toda a dignidade dos rostos humanos que tão afanosamente escolhestes.
Se aquele desabafo que me confidenciaste se confirmasse, o estrebuchar do nosso cinema far-se-ia sentir (não emigre, agora mais do que nunca é necessário fazer mais cinema como o vosso em Portugal). E que o segundo filme sobre Trás-os-Montes se inicie muito em breve, pois parar é morrer.
Luís Machado
Jornal A Luta, pág. 14, de 11 de Agosto de 1976
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