quinta-feira, outubro 14, 2004

043. SOBRE ANTÓNIO REIS

A notícia da morte de António Reis foi um segundo golpe que me atingiu em curto espaço de tempo. O primeiro, durante a rodagem d'A DIVINA COMÉDIA, com a perda de Ruy Furtado que nem sequer pôde terminar o seu trabalho de actor nesse filme. Logo em seguida, estava eu já em Veneza para apresentação do referido filme, quando me deram a notícia da morte súbita do António Reis. E por ironia do destino, na mesma ocasião, a pessoa que se vira constrangida a dar-me a triste notícia, o produtor Paulo Rocha, dava-me conhecimento que o nosso filme ia receber o Prémio Especial do Júri. O choque inesperado da primeira notícia amargurava profundamente a alegria que me concedia a segunda. António Reis se fosse vivo, estou bem certo disto pelo que conhecia da sua estima e da sua generosidade, teria rejubilado com a boa nova.
Ele tinha um espírito artístico, e um temperamento muito sensível. Poeta, quando posto a escrever os seus «novíssimos» poemas. Poeta ainda, quando voltado para a realização, em parceria com Margarida Cordeiro, dos seus filmes.
Solitário, é como acaba sempre todo o verdadeiro artista. António Reis isolou-se com a companheira e a filha num privilegiado recolhimento, aconchegando-se ao seu cantinho de afectividade e de criatividade. Mas amava o mundo, sem o qual não poderia fazer filmes, ou escrever versos, e procurava uma noção de justiça que julgava ao alcance da mão humana. E isto sente-se na sua obra. Direi mesmo que por vezes se ressente, quando não podia ir mais além e tinha de ficar pelos contornos do desejo, suspenso de vã esperança.
JAIME, ou mais ainda, TRÁS-OS-MONTES e ANA, não cheguei a ver o seu último, são filmes singulares. Difíceis, talvez, ou de penetração nem sempre fácil pelo emaranhado de uma expressão complexa que lhe era bem própria na interpretação dos seres e da natureza e, ao mesmo tempo, de uma exposição simples, mesmo de uma candura na linguagem singela e atraente, mas muito peculiar.
Quando demorei em Paris na montagem de um filme meu, passava obrigatoriamente pelo Faubourg du Temple, rua onde ficava o cinema Action République, ao tempo dirigido pelo Paulo Branco que sempre ajudou a divulgação de mais refinado cinema português. Esta circunstância proporcionou-me frequentes visões do filme ANA que passava naquela sala todos os fins de tarde. Pouco a pouco se foi desbobinando, ante a minha curiosidade, o cordão umbilical que é o meandro do construtivismo em que assenta o filme ANA. Entendi, uma vez mais, que certos filmes requerem, em boa verdade, uma total aderência para se poder entrar no âmago e não se deixar ficar pelas aparências.
António Reis era um artista de grande sensibilidade. Logo o pressenti quando tomei conhecimento com ele. Estranhamente, foi como se o conhecesse de sempre e até não me lembro, de todo, da ocasião, ou de como o conheci. Sei, porém, que nos ligou desde o primeiro instante uma igual paixão pelas coisas da Arte. Resultou talvez daí o meu convite para me acompanhar como assistente de realização na rodagem do ACTO DE PRIMAVERA, produção que ia naquela altura principiar. As filmagens daquele «mistério», o Auto da Paixão, foram feitas numa terra chamada Curalha, que ficava a seis quilómetros de Chaves, e onde tinha visto uma representação na Páscoa anterior, interpretada pelo povo da aldeia. Por causa do mau tempo, muitas vezes encoberto, ou com nevoeiro denso e, até, chuvas, fomos obrigados a permanecer muitos dias sem filmar e só aproveitando as boas ocasiões.
O António Reis tinha pedido uma licença sem vencimento para poder acompanhar-me. Com a demora acima referida, em breve terminou o prazo e ele teve de voltar ao emprego sem ter assitido senão a cerca de metade da realização. Enquanto esteve presente - e apraz-me dizer aqui que as nossas relações foram sempre excelentes - tive ocasião de lhe oferecer oportunidade para ele dirigir por sua própria mão uma das cenas. Haveria em mim, talvez, uma certa curiosidade de ver como se sairia da incumbência. Mas ele não se teria sentido motivado e, sem dizer sim ou não, discretamente e com aquele seu sorriso malandreco, veio colocar-se no lugar que costumava ocupar como assistente. Fiquei um tanto surpreso, mas aceitei o seu pudor, ou o quer que fosse, e não insisti. De resto a situação tornou-se numa espécie de impasse, assaz delicado e, instintivamente, retomei o meu trabalho. Não falámos nunca sobre este episódio. Foi como se não tivesse ocorrido, mas eu fiquei de curiosidade insatisfeita, sem saber se não teria aceitado por simples timidez, ou se por um excesso de delicadeza para comigo, respeitando um trabalho que me pertencia.
É certo que António Reis não tinha até aquela altura nenhuma experiência prática do cinema como trabalho aplicado. Parece, porém, que esta forma concreta de expressão lhe tocou. Tanto assim que, depois de uma outra experiência muito positiva, a de ter escrito os diálogos para o segundo filme do Paulo Rocha, a breve trecho aparecia como realizador-autor do JAIME.
Se em alguma quantidade, ou de qualquer outra maneira contribui para aquele passo, só posso hoje orgulhar-me, pois o Cinema Português, como o desaparecimento do António Reis, perde um dos seus grandes realizadores.

Manuel de Oliveira


Regina Guimarães (Directora) - A Grande Ilusão, n.º 13/14 (Out. 91 a Mai. 92), pág. 6-7, Edições Afrontamento, Porto, 1992.