127. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Luís de Pina-1
[Estreia no cinema Satélite, Lisboa - Sexta-feira, 11 de Junho de 1976]
«Trás-os-Montes: primeiro tempo»
Devia se explicado aos espectadores de "Trás-os-Montes" que não apenas as obras de ficção são bons livros, mas também os livros de poesia, os livros de memórias, as reportagens, as entrevistas, tantas vezes bem mais empolgantes que os enredos de ficção. Isto porque me parece que o público vai ver "Trás-os-Montes" à procura de fio de história e não o encontra, ficando desapontado com o facto, mesmo apesar de o próprio António Reis vir dizer à sala, com tela escura e altifalante aberto, que se trata de uma película "diferente" e assim procurar alertá-lo para um outro tipo de expressão fílmica.
Esta é a primeira prevenção quanto ao filme e daqui avisamos o nosso leitor, pois "Trás-os-Montes", documento poético das terras de além-Douro bem merece ser visto, quase diria, é obrigatório ser visto, se esta obrigatoriedade não pudesse parecer suspeita.
A segunda prevenção diz respeito aos nossos distantes mas tão antigos e portugueses amigos que são os transmontanos. Não compreendemos, de facto, a indignação de alguns sectores do Nordeste perante as imagens da sua terra.
É preciso entender que se trata não de um documentário real de Trás-os-Montes, mas de uma evocação semi-documental, em que a fantasia se junta ao natural, das pegadas do seu passado mais genuíno, das razões esquecidas de um ostracismo vindo da longínqua e indiferente capital, dos momentos mais secretos do coração das pessoas, das surpresas que uma inspiração de criança pode suscitar, das imagens intensas que são sobretudo estados de alma.
Em vez de barragens e das obras públicas que são legítimo orgulho dos transmontanos, António Reis e Margarida Cordeiro preferiram os cristais gelados de um arroio na manhã de Inverno; em vez das casas, dos bairros, das indústrias e dos complexos agro-pecuários, os autores preferiram a pedra antiquíssima das casas aparentemente humildes mas ricas de afecto, calor humano e saudades em vez de estradas com camiões, autocarros e tractores, escolheram as veredas da montanha e os senteiros que traçam os campos; em vez dos fatos a preceito quiseram os rostos frescos das crianças e as caras enrugadas dos velhos, monumentos de dignidade e de história; em vez do tempo actual, preferiram a mistura poética de passado e presente, em que se fala de rocas de fiar e Branca Flor, em que se ouvem trechos de um cantar amigo e o português rude dos transmontanos se junta ao mirandês que nunca ouvimos em filmes; em vez de uma falsa amizade que parece levar-nos ao Nordeste, torna presente aquela distância enorme que separa a província das Gálias e das Germânias.
Descansem, amigos transmontanos, que a fita do António Reis e da Margarida Cordeiro não se propõe quaisquer intuitos tenebrosos, mas é uma límpida e pura homenagem sobretudo ao povo verdadeiro que sois todos vós, vistos e filmados com aquela singular e por vezes desconcertante verdade que tem o nome de Poesia, não a fácil e sentimental criação de agradável fantasia, mas o eco sentido de um povo que vive a sua liberdade, ama a sua terra e sabe como ninguém o que tem sido a ingratidão da História.
Luís de Pina
Jornal O Dia, pág. 7, de 15 de Junho de 1976
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